Fita 7: Lado A

O parque Eisenhower está vazio. Fico parado em silencio na entrada, dando uma olhada geral. É aqui que vou passar o resto da noite. Aqui que vou escutar as últimas palavras de Hannah Baker antes de me deixar cair no sono.
Postes de iluminação se espalham playground, mas a maioria das lâmpadas esta queimada ou quebrada. A metade de baixo do foguete-escorregador se esconde no escuro. Perto do topo, onde a altura do foguete ultrapassa os balanços e as arvores, a luz do luar bate em suas barrar de metal e o ilumina até em cima.
Ponho os pés na área de areia que cerca o foguete. Eu me agacho para ficar embaixo de sua plataforma inferior, suspensa por três grandes barbatanas de metal. Em cima de mim há um círculo, largo o suficiente para uma pessoa passar. É o piso mais baixo do foguete. Saindo dele, uma escada de metal desce até a areia.
Assim que me ergo, meus ombros atravessam o buraco. Com a mão boa, me apoio na beirada do círculo e subo até a primeira plataforma.
Enfio a mão no bolso da jaqueta e aperto play.


Uma... última... tentativa.
Ela está sussurrando. O gravador está bem pertinho de sua boca e, a cada intervalo entre suas palavras, posso ouvir sua respiração.
Estou dando mais uma chance à vida. E, desta vez, vou buscar ajuda. Vou pedir ajuda, porque não consigo fazer isso sozinha. Eu já tentei.
Não tentou, Hannah. Eu estava ali, por você, e você me mandou embora.
É claro que, se estiverem escutando isso, eu fracassei. Ou ele fracassou. E, se ele fracassar, o negócio está fechado.
Sinto um aperto na garganta e começo a subir a próxima escada.
Só resta uma pessoa entre vocês e esta coleção de fitas: o Sr. Porter.
Não! Ele não pode ficar sabendo disso.
O Sr. Porter é nosso professor, meu e de Hannah. Eu o vejo todos os dias. Não quero que ele saiba nada sobre isso. Não sobre mim. Nem ninguém. Meter um adulto nessa história, uma pessoa do colégio, vai além do que eu imaginava.
Sr. Porter, vejamos como o senhor se sai.
Um som de zíper abrindo. Um barulho como se ela estivesse guardando alguma coisa. Hannah está colocando o gravador dentro de algum lugar. A mochila? O casaco?
Ela bate em uma porta.
Bate novamente.
–– Hannah! Fico contente que tenha vindo.
A voz esta abafada, mas é ele. Sério, mas amável.
–– Entre. Sente-se aqui.
Obrigada.
Nosso professor, mas também o orientador dos alunos com sobrenomes de A a G. O orientador de Hannah.
–– Você está bem acomodada? Quer um copo de água?
–– Estou bem. Obrigada.
––Então, Hannah, em que posso ajudar? Sobre o que você gostaria de conversar?
–– Bem, isso... não sei, na verdade. Simplesmente sobre tudo, eu acho.
–– Isso pode demorar um pouco.
Uma pausa longa. Longa demais.
–– Hannah, está tudo bem. Tenho todo o tempo de que você precisar. Pode começar quando quiser.
–– É só que... as coisas... tudo está tão difícil neste momento. –– Sua voz treme. –– Não sei por que onde começar. Quer dizer, até que sei. Mas é tanta coisa, e eu não sei como resumiu tudo.
–– Você não precisa resumir tudo. Por que não começa por como você está se sentido hoje?
–– Neste exato momento?
–– Neste exato momento.
–– Este exato momento, me sinto perdida, eu acho. Meio vazia.
–– Vazia como?
–– Simplesmente vazia. Simplesmente nada. Não me importa mais.
–– Com o quê?
Faça ela contar. Continue fazendo perguntas, mas faça ela contar.
–– Com tudo. Com a escola. Com as pessoas da minha escola.
–– E os seus amigos?
–– O senhor terá de definir o que são amigos se quiser uma resposta para essa pergunta.
–– Não me diga que você não tem amigos, Hannah. Eu vejo você pelos corredores.
–– É sério, eu preciso de uma definição. Como a gente sabe que é um amigo?
–– Alguém com quem você pode contar, quando...
–– Então, eu não tenho nenhum. É por isso que estou aqui, não é? Estou contando com o senhor.
–– Sim. Você está. E fico contente que esteja aqui, Hannah.
Engatinho pelo chão da segunda plataforma e ajoelho ao lado de uma abertura entre as barras. Uma abertura grande o suficiente para as pessoas rastejarem até o escorregador.
–– O senhor não sabe como foi difícil marcar essa reunião.
–– Minha agenda estava razoavelmente tranqüila essa semana.
–– Não difícil de agendar. Difícil de chegar até aqui.
A luz do luar bate no metal liso do escorregador. Posso Imaginar Hannah aqui, mais ou menos dois anos atrás, escorregando.
Até sumir para longe.
–– Mas uma vez, estou contente que esteja aqui, Hannah. Então, me diga, quando você sair dessa sala, de que maneira gostaria que as coisas fossem diferentes?
–– O senhor está querendo saber como me ajudar?
–– Sim.
–– Acho que... eu não sei. Não sei ao certo o que esperar.
–– Bem, o que você precisa, neste exato momento, que não está conseguindo ter? Vamos começar por isso.
–– Preciso que a coisa pare.
–– O que precisa parar?
–– Preciso que tudo pare. As pessoas. A vida.
Recuo diante do escorregador.
–– Hannah, você tem noção do que acaba de dizer?
Ela tem noção, Sr. Porter. Ela quer que o senhor repare no que ela disse e a ajude.
–– Você disse que quer que a vida pare, Hannah. A sua vida?
Nenhuma resposta.
–– É isso que você queria dizer, Hannah? São palavras muito serias, você percebe?
Ela sabe todas as palavras que saem da boca dela, Sr. Porter.
Ela sabe que são palavras serias. Faça alguma coisa!
–– Eu sei. São mesmo. Sinto muito.
Não peça desculpas. Converse com ele!
–– Eu não quero que minha vida acabe. É por isso que estou aqui.
–– Então, o que aconteceu, Hannah? Como foi que nós chegamos a esse ponto?
–– Nós? Ou como foi que eu cheguei a esse ponto?
–– Você, Hannah. Como foi que você chegou a esse ponto? Sei que não dá pra resumir tudo. É um efeito bola de neve, estou certo?
Sim. Um efeito bola de neve. É assim que ele tem chamado.
–– É uma coisa em cima da outra. Coisas demais, não?
–– É difícil demais.
–– A vida?
Outra pausa.
Agarro as barras externas do foguete e dou um impulso para cima. A mão cheia de curativos dói. Arde quando apoio meu peso nela, mas não importo.
–– Pegue isso aqui. Uma caixa inteira de lenços de papel, só para você. Nunca foi usada.
Uma risada. Ele conseguiu fazê-la rir!
–– Eu sei que parece bobagem.
–– Então explique.
–– É difícil explicar, a não ser que o senhor tenha ouvido alguns dos boatos a meu respeito.
–– Eu não ouvi. Os professores, especialmente um professor acumula o cargo de orientador, tendem a ficar fora das fofocas dos alunos. Não que a gente não tenha nossas próprias fofocas.
–– A seu respeito?
Ele ri.
–– Depende. O que foi que você ouviu?
–– Nada. Estou brincando.
–– Mas você vai me contar se ouvir alguma coisa.
–– Eu prometo.
Não faça piada, Sr. Porter. Ajude-a. Volte para Hannah. Por favor.
–– Quando foi a última vez que um boato... surgiu?
–– É assim mesmo. Nem todos são boatos.
–– Certo.
–– Não. Escute...
Por favor, escute.
–– Uns anos atrás, eu fui eleita... o senhor sabe, em uma dessas enquetes. Bem, não foi realmente uma enquete, mas alguém que teve a ideia estúpida de fazer uma lista. Uma coisa tipo melhores e piores.
Ele não responde. Será que ele viu a lista? Será que sabe do que ela está falando?
–– E as pessoas vem reagindo a essa lista desde aquela época.
–– Quando foi a última vez?
Ouço ela tira um lenço de papel da caixa.
–– Recentemente. Numa festa. Eu juro que foi umas das piores noites da minha vida.
–– Por causa de um boato?
–– Muito mais que um boato. Mas, em parte, sim, por causa de um boato.
–– Posso saber o que aconteceu nessa festa?
–– Não foi exatamente durante a festa. Foi depois.
–– Hannah, Serpa que podemos jogar o “ Jogo das vintes perguntas?
–– O quê?
–– Às vezes é difícil para as pessoas se abrirem, mesmo diante de um orientador, que mantém tudo estritamente confidencial.
–– Sei.
–– Então, podemos fazer o jogo?
–– Sim.
–– Nessa festa que você citou, estamos falando de um garoto?
–– Sim. Só que, mais uma vez, não foi durante a festa.
–– Entendo. Mas precisamos começar em algum lugar.
–– Tudo bem.
Ele solta um suspiro profundo.
–– Não vou julgá-la, Hannah, mas você fez alguma coisa, nessa noite, da qual se arrepende?
–– Sim.
Eu me levanto e vou andando até as barras que cercam o foguete. Envolvendo duas barras com as mãos, coloco meu rosto no espaço entre elas.
–– Aconteceu alguma coisa com esse garoto – e você pode ser totalmente sincera comigo, Hannah –, aconteceu alguma que poderia ser considerada ilegal?
–– O senhor quer dizer estupro? Não. Acho que não.
–– Por que você não sabe?
–– Por que havia certas circunstâncias especificas.
–– Álcool?
–– Talvez, mas não no meu caso.
–– Drogas?
––Não, apenas outras circunstâncias.
–– Você está pensando em dar queixa à polícia?
–– Não. Eu... não.
Solto todo o ar dos pulmões.
–– Então, quais são suas opções?
–– Não sei.
Fale para ela, Sr. Porter. Fale para ela quais são as opções que ela pode ter.
–– O que podemos fazer para resolver esse problema, Hannah? Juntos.
–– Nada. Já passou.
–– Alguma coisa precisa ser feita, Hannah. Alguma coisa precisa mudar para você.
–– Eu sei. Mas quais são minhas opções? Preciso que o senhor me diga.
–– Bem, se você não quer dar queixa, se você não tem certeza nem se pode dar queixa, então você tem duas opções.
–– Quais? Quais são?
Ela parece ter alguma esperança. Está depositando esperança demais nas respostas dele.
–– Uma delas é confrontá-lo. Podemos chamá-lo aqui, para discutir o que aconteceu nessa festa. Posso chamar vocês dois fora da...
–– O senhor disse que havia duas opções.
–– A segunda, sem querer ser insensível, Hannah, é seguir em frente.
–– O senhor quer dizer, não fazer nada?
Seguro firme nas barras e cerro os olhos.
–– É uma opção, e é disso que estamos falando. Veja bem, uma coisa aconteceu, Hannah. Eu acredito em você. Mas se não quer dar queixa e não quer confrontá-lo, você precisa considerar a possibilidade de seguir em frente, deixando isso para trás.
E se isso não for uma possibilidade? E daí, como fica? Porque adivinhe uma coisa, Sr. Porter: ela não fará isso.
–– Deixar isso para trás?
–– Ele é da sua classe, Hannah?
–– Está no último ano.
–– Então, vai embora no ano que vem.
–– O senhor quer que eu deixe isso para trás.
Não é uma pergunta, Sr. Porter. Não interprete assim. Ela está pensando em voz alta. Não é uma opção, porque ela não pode fazer isso. Diga a ela que o senhor vai ajudar.
Um barulho de coisas roçando umas nas outras.
–– Obrigada, Sr.Porter.
Não!
–– Hannah. Espere. Você não precisa ir embora.
Eu grito entre as barras. Por cima das árvores.
–– Não.
–– Acho que é isso.
Não deixe ela sair.
–– Já consegui o que buscava.
–– Acho que temos mais coisas para conversar, Hannah.
–– Não, acho que já destrinchamos tudo. Preciso seguir em frente e deixar isso para lá.
–– Não é deixar para lá, Hannah. Só que às vezes não resta nada a fazer a não ser seguir em frente.
Não deixe ela sair desta sala.
–– O senhor está certo. Eu sei.
–– Hannah, não entendo por que você está com tanta pressa para ir embora.
–– Porque preciso levar as coisas em frente, Sr. Porter. Se nada vai mudar, então e melhor eu levar tudo em frente, certo?
–– Hannah, do que você está falando?
–– Estou falando da minha vida, Sr. Porter.
Uma porta se abre.
–– Hannah, espere.
Uma porta se fecha. O zíper se abre.
Passos. Passos ganhando velocidade.
Estou descendo o corredor.
Sua voz está clara. Mais alta.
A porta dele está fechada atrás de mim. Ela permanece fechada.
Uma pausa.
Ele não vem.
Pressiono o rosto, com força, nas barras. Sinto como se elas fossem uma prensa que vão apertando meu crânio quanto mais eu empurro a cabeça contra elas.
Ele está me deixando ir embora.
O ponto atrás da minha sobrancelha lateja intensamente, mas não toco nele. Não esfrego. Deixo latejar.
Acho que me expressei com muita clareza, mas ninguém deu um passo para me impedir.
Quem, Hannah? Seus pais? Eu? Você não foi muito clara comigo.
Muitos de você sem importaram comigo, mas não o bastante. E isso... isso é o que eu precisava descobrir.
Mas eu não sabia o que você estava passando, Hannah.
E eu descobri.
Os passos continuam. Mais rápidos.
E eu sinto muito.
Num estalo, o gravador é desligado.
Com o rosto pressionado contra as barras, começo a chorar.
Se alguém estiver andando pelo parque, sei que poderá me ouvir. Mas não me importo se me ouvirem, porque não consigo acreditar que acabo de escutar as últimas palavras de Hannah Baker, as últimas de toda a minha vida.
“Sinto muito.” Mas uma vez, foram essas as palavras. E agora, sempre que alguém disser “Sinto Muito”, vou pensar nela.
Alguns não sentirão vontade de retribuir as mesmas palavras. Alguns ficarão com muita raiva de Hannah, por ela ter se matado e colocado a culpa em todo mundo.
Eu teria ajudado, se ela tivesse deixado. Eu teria ajudado porque queria que ela estivesse viva.
A fita cassete vibra no walkman quando chega ao fim.


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