Fita 6: Lado A

Tony tira a chave da ignição. Algo para segurar enquanto ele fala.
–– Fiquei tentando achar uma maneira de contar isso, o tempo todo que ficamos rodando. O tempo todo que ficamos sentados aqui. Até quando você estava botando tudo para fora.
–– Você reparou que eu não vomitei no seu carro?
–– Reparei, sim. –– Ele sorri, olhando para as chaves. –– Obrigado. Agradeço de coração.
Fecho a porta do carro. Meu estômago voltou ao normal.
–– Ela veio até minha casa. Hannah. E essa foi minha chance –– diz Tony.
–– De quê?
–– Clay, os sinais estavam todos ali.
–– Eu tive minha chance também.
Tiro os fones de ouvido e os coloco no joelho.
–– Na festa. Ela pirou quando nos beijamos, e eu não sabia por quê. Essa foi minha chance.
Dentro do carro, está escuro. E quieto. Com as janelas completamente fechadas, o mundo exterior parece mergulhado num sono profundo.
–– Nós todos temos culpa. Pelo menos um pouco.
–– Então, ela foi à sua casa.
–– De bicicleta. A mesma com que ela sempre ia à escola.
–– A azul. Deixa eu adivinhar: você estava mexendo no seu carro.
Ele ri.
–– Quem poderia imaginar, né? Mas ela nunca tinha ido à minha casa antes, por isso fiquei um pouco surpreso. Sabe, nós éramos amigos na escola, então não achei que fosse nada demais. O esquisito, porém, era o motivo por que ela foi até lá.
–– Qual?
Ele olha pela janela e inspira profundamente.
–– Ela foi até lá para me dar a bicicleta.
As palavras permanecem ali, intocadas, durante um tempo desconfortavelmente longo.
–– Ela gostaria que eu ficasse com a bicicleta. Ela não queria mais. Quando perguntei por quê, ela só deu de ombros. Não tinha um motivo. Mas era um sinal. E eu deixei passar. Do folheto distribuído na escola, tipo um dos itens: “dar seus pertences aos outros”.
–– Ela achava que eu era a única pessoa que poderia precisar da bicicleta. Como eu ia para a escola dirigindo o carro mais antigo de todos, segundo ela, se algum dia meu carro quebrasse, talvez eu precisasse de um transporte alternativo.
–– Mas essa belezura nunca quebra! –– eu tento brincar.
–– Essa coisa sempre quebra. Eu sempre preciso consertá-la. Aí, falei para ela que não podia ficar com a bicicleta. A não ser que eu lhe desse algo em troca.
–– O que você deu?
–– Nunca me esquecerei disso –– ele se vira para olhar para mim. –– Os olhos dela, Clay, em nenhum momento se desviaram. Ela ficou olhando dentro dos meus olhos e começou a chorar. Ficou me encarando, com as lágrimas escorrendo no rosto.
Ele enxuga suas lágrimas e passa a mão no lábio superior.
–– Eu deveria ter feito alguma coisa. Os sinais estavam todos ali, em toda parte, para qualquer um que estivesse a fim de reparar.
–– O que foi que ela pediu?
–– Ela perguntou como eu gravava minhas fitas, aquelas que ponho pra tocar no carro. –– Ele recosta a cabeça e respira fundo. –– Eu falei do velho gravador do meu pai. –– Faz uma pausa. –– Então ela perguntou se eu tinha algum aparelho para gravar vozes.
— Meu Deus.
— Tipo um gravador portátil ou algo parecido. Algo que você não precisasse ligar na tomada, que desse para andar com ele por aí. E não perguntei para quê. Falei para ela esperar, que eu ia buscar.
— E você deu pra ela?
Ele se vira para mim, com o rosto endurecido.
— Eu não sabia o que ela ia fazer com aquilo, Clay.
— Espera aí, não estou acusando você, Tony. Mas ela não disse nada sobre o motivo daquilo?
— Se eu perguntasse, você acha que ela teria contado?
Não. No momento em que foi à casa de Tony, ela já estava decidida. Se quisesse que alguém a impedisse, que a socorresse de si mesma, esse alguém era eu. Na festa. E ela sabia disso.
Faço um sinal negativo.
— Ela não teria contado.
— Alguns dias depois, quando cheguei do colégio, tinha um pacote encostado na entrada de casa. Eu levei ele para meu quarto e comecei a escutar as fitas. Aquilo não fazia o menor sentido — ele desabafa.
— Ela não deixou um bilhete ou algo parecido?
—Não. Só as fitas. Mas não fazia o menor sentido, porque Hannah e eu tínhamos uma aula em comum, e ela tinha ido à escola naquele dia.
— Como assim?
— Então, quando cheguei em casa e comecei a escutar as fitas, fui até o fim de todas bem depressa. Avancei para ver se eu estava nelas. Mas não estava. E foi aí que fiquei sabendo que ela tinha me entregado o segundo conjunto de fitas. Por isso, procurei o telefone da casa dela na lista e liguei, mas ninguém atendeu. Liguei para a loja dos pais dela. Quis saber se Hannah estava lá e eles me perguntaram se estava tudo bem, porque eu com certeza parecia um maluco.
— O que você disse?
— Falei pra eles que havia alguma coisa errada e que precisavam encontrá-la. Mas não consegui dizer o motivo. — Ele expira num sopro fino e agudo. — E ela não foi para a escola no dia seguinte. Tenho vontade de dizer a ele que sinto muito, que não consigo imaginar como deve ter sido isso. Mas, aí, penso no dia de amanhã, na escola, e percebo que logo ficarei sabendo como é. Vendo as outras pessoas que estão nas fitas pela primeira vez depois de ouvi-las.
— Fui para casa mais cedo, aquele dia, fingindo que estava passando mal. E tenho de admitir que levei alguns dias para me recuperar. Quando voltei ao normal Justin Foley estava com uma cara péssima. Depois, foi Alex. E eu pensei: certo, a maioria dessas pessoas merece isso, portanto, vou fazer o que ela pediu e me certificar de que todos vocês ouviram o que ela tem a dizer
— Como você está acompanhando tudo isso? Como você sabia que eu estava com as fitas? — pergunto.
— No seu caso, foi fácil. Você roubou meu walkman, Clay.
Nós dois rimos. E isso traz uma sensação boa. Uma libertação. Como rir num funeral. Algo talvez inapropriado, mas definitivamente necessário.
— No resto dos casos, foi um pouco mais complicado. Eu corria até o meu carro, assim que tocava o último sinal, e dirigia o mais perto possível do gramado da frente da escola. Quando eu via a pessoa seguinte, uns dois dias depois de saber que o último da lista já tinha escutado as fitas, eu a chamava e acenava para ela vir onde eu estava.
— E, aí, você perguntava se ela estava com as fitas?
— Não. Teriam negado, certo? Por isso, eu segurava uma fita na mão quando eles chegavam perto e falava para entrarem no carro, porque tinha uma música que eu queria que escutassem. Todas as vezes, baseado na reação da pessoa, eu ficava sabendo.
— E, aí, você punha para tocar uma das fitas dela?
— Não. Se a pessoa não saísse correndo, eu tinha de fazer alguma coisa, por isso, eu punha uma música para ela escutar. Qualquer música. Eles ficavam sentados aí, onde você está, se perguntando por que diabos eu estava tocando aquela música para eles. Mas, se eu estivesse certo, os olhos da pessoa ficavam apagados, como se ela estivesse a um milhão de quilômetros de distância.
— Então, por que você? Por que ela entregou as fitas a você?
— Não sei. A única coisa que consigo imaginar é o fato de eu ter dado o gravador. Ela achou que eu tinha uma participação nesse esquema e desempenharia meu papel nele.
— Você não está nas fitas, mas, mesmo assim, faz parte delas.
Ele encara o para-brisa e agarra o volante.
— Preciso ir.
— Eu não quis dizer nada com isso. De verdade — tento me explicar.
— Eu sei. Mas é tarde. Meu pai vai começar a imaginar que o carro quebrou em algum lugar.
— O quê, você não quer que ele fique fuçando de novo embaixo do capô?
Seguro a maçaneta da porta e me lembro de uma coisa. Pego o telefone.
— Preciso que você faça um favor. Você poderia dar um alô para minha mãe?
— Claro.
Percorro a lista de nomes, aperto “chamar” e ela atende imediatamente.
— Clay?
— Oi, mãe.
— Clay, onde você está? — ela parece magoada.
— Eu disse que talvez ficasse fora até tarde.
— Eu sei. Você falou. Estava só esperando que você telefonasse.
— Sinto muito. Vou precisar ficar mais um pouco. Talvez precise passar a noite na casa do Tony. Sem perder a deixa:
— Olá, sra. Jensen.
Ela pergunta se eu andei bebendo.
— Mãe, não. Eu juro.
— Certo, bem, é para aquele trabalho de escola, de história, certo?
Eu me encolho. Ela quer tanto acreditar nas minhas desculpas. Toda vez que eu minto, ela quer tanto acreditar em mim...
— Eu confio em você, Clay.
Digo a ela que passarei em casa antes da aula para negar minhas coisas, aí desligamos.
— Onde você vai ficar? — pergunta Tony.
— Não sei. Provavelmente vou para casa. Mas não quero que ela fique preocupada se eu não for. Tony gira a chave, o motor dá partida, e ele acende os faróis.
— Você quer que eu te leve para algum lugar?
Seguro a maçaneta e aponto com a cabeça para a tal casa.
— É aqui que eu estou nas fitas. De qualquer forma, obrigado.
Seus olhos fixam-se no horizonte.
— De verdade. Obrigado — eu repito. E, ao dizer isso, a intenção é agradecer por algo além da simples carona. Por tudo. Pela maneira como ele reagiu quando eu perdi o controle e chorei. Por tentar me fazer rir na noite mais horrível da minha vida.
É bom saber que alguém compreende o que estou escutando, o que estou passando.
De alguma forma, isso torna menos assustador o ato de continuar.
Saio e fecho a porta. O carro dele arranca.
Aperto o play.


De volta para festa, pessoal. Mas não se acomodem demais, porque sairemos em poucos minutos.
Meia quadra adiante, o Mustang de Tony para num cruzamento, entra à esquerda e vai embora.
Se o tempo fosse um cordão, unindo todas as histórias de vocês, essa festa seria o ponto onde tudo se amarra com um nó. E esse nó continua crescendo sem parar, fica cada vez mais embaraçado, arrasta o resto das histórias para dentro dele.
Quando Justin e eu finalmente deixamos de nos encarar daquela maneira horrível e dolorosa, saí andando pelo corredor, de volta à festa. Fui cambaleando, para falar a verdade. Mas não por causa da cerveja. Por causa de todo o resto.
Sento na guia, a poucos metros do local onde vomitei. Se quem quer que seja o morador da casa, porque não tenho ideia de quem era o dono da festa, pedir que eu vá embora, agradecerei. Por favor, faça isso.
Segurei no piano da saia de estar. Depois, no banco do piano.
E me sentei.
Eu queria ir embora, mas para onde? Não podia ir para casa.
Ainda não.
E, aonde quer eu fosse, como poderia chegar? Estava fraca demais para caminhar. Pelo menos, foi o que achei. Mas, na verdade, estava fraca demais para tentar. A única coisa que eu sabia com certeza era que queria cair fora e não pensar em nada, em ninguém, nunca mais.
Aí, alguém tocou o meu ombro. Um apertãozinho suave.
Era Jenny Kurtz
Aquela animadora de torcida que estava na secretaria do grêmio estudantil.
Jenny, esta aqui é para você.
Deixo a cabeça cair sobre os joelhos.
Jenny perguntou se eu precisava de uma carona para casa e eu quase dei risada. Era tão óbvio assim? Minha aparência estava tão horrível?
Então, enlacei meu braço no dela e ela me ajudou a levantar.
Isso me fez sentir bem, deixar alguém me ajudar. Saímos andando pela porta da frente, atravessando uma multidão, gente desmaiada na entrada, fumando no jardim.
Em algum lugar, nesse momento, eu caminhava de uma quadra para outra, tentando decifrar por que tinha ido embora. Tentando decifrar, tentando entender o que acabara de acontecer entre mim e Hannah.
O chão estava úmido. Meus pés, anestesiados e pesados, deslizavam no concreto. Eu escutava o som de cada pedregulho e cada folha em que eu pisava. Eu queria escutar todos esses sons. Para bloquear a música e as vozes atrás de mim.
Embora estivesse a algumas quadras de distância, eu ainda escutava a música. Distante. Abafada. Como se eu não conseguisse me afastar o suficiente.
E ainda consigo me lembrar de todas as músicas que tocaram.
Jenny, você não disse uma palavra sequer. Não me fez nenhuma pergunta. E eu me sentia tão grata. Talvez tenham acontecido coisas com você, ou talvez você tenha visto coisas rolarem nas festas que simplesmente não podiam ser comentadas. Não imediatamente, pelo menos. Algo, de certa forma, oportuno, porque eu não havia falado nada sobre isso até agora.
Bem... não... eu tentei. Tentei uma vez, mas ele não quis ouvir.
Seria essa a décima segunda história? A décima terceira? Ou algo totalmente diferente? Seria um daqueles nomes que ela escreveu no papel e não quer contar para nós?
Aí, Jenny, você me levou até seu carro e, embora meus pensamentos estivessem em outro lugar — meus olhos focalizando o nada —, eu senti seu jeito. Você segurou no meu braço com carinho e se abaixou para me colocar no banco do passageiro. Você apertou meu cinto de segurança, sentou no seu banco e fomos embora.
Não sei ao certo o que aconteceu a seguir. Eu não estava prestando atenção, porque, no seu carro, me sentia segura. O ar ali dentro estava quentinho e reconfortante. Os limpadores de para-brisa, lentos, me tiravam com delicadeza dos meus pensamentos, me trazendo para dentro do carro. Para dentro da realidade.
A chuva não estava pesada, mas embaçava o vidro o suficiente para deixar tudo com uma atmosfera de sonho. E eu precisava disso. Evitava que meu mundo se tornasse real demais, rápido demais.
E aí... ela bateu. Nada como um acidente para trazer o mundo de volta, numa paulada só.
Um acidente? Outro? Dois em uma noite? Como eu não tinha ouvido falar nesse?
A roda da frente, do meu lado, acertou a guia com tudo, saltando por cima dela. Um poste de madeira deu de cara com o para-choque dianteiro e se partiu como um palito de dente.
Meu Deus. Não.
Uma placa de “pare” tombou para trás, diante dos faróis do carro. Ela ficou presa embaixo dele e você gritou e enfiou o pé no breque. Pelo espelho lateral, vi faíscas voando sobre a pista, conforme fomos derrapando, até parar. Tudo bem, agora estou acordada.
Ficamos sentadas um instante, olhando fixamente através do vidro. Nenhuma palavra, nenhum olhar entre nós. Os limpadores de para-brisa continuavam varrendo a chuva de um lado para o outro. E minhas mãos permaneciam agarradas ao cinto de segurança, agradecendo por termos atingido apenas uma placa.
O acidente com o velho. E o cara do colégio. Será que Hannah sabia? Sabia que Jenny tinha causado o acidente?
Sua porta se abriu e fiquei assistindo você andar até a frente do carro e se agachar na frente dos faróis, para olhar mais de perto. Você passou a mão na lataria amassada e deixou a cabeça pender para baixo. Não consegui perceber se você estava irritada. Ou você estava chorando?
Quem sabe estivesse rindo da maneira como aquela noite estava se tornando tão horrível.
Eu sei aonde vou. Não preciso do mapa. Sei exatamente onde fica a próxima estrela, por isso me levanto para começar a caminhar.
O amassado não era dos piores. Não quero dizer que isso era uma coisa boa, mas que você podia ficar aliviada. Poderia ter sido pior. Poderia ter sido muito, muito pior. Por exemplo... você poderia ter batido em alguma outra coisa...
 Ela sabe.
Alguma outra coisa viva.
Eu não sei quais foram seus primeiros pensamentos, mas você ficou parada, de pé, com uma expressão vazia. Parada, encarando o amassado, balançando a cabeça.
Aí, seu olhar cruzou com o meu. E tenho certeza que vi você fazer uma cara horrível, mesmo que tenha durado apenas uma fração de segundo. Mas aquela cara feia se transformou num sorriso e, em seguida, você deu de ombros. E quais foram as primeiras palavras que você disse quando entrou de volta no carro?
“Que saco!
Você colocou a chave na ignição e... e eu impedi. Não podia deixar você sair guiando.
No cruzamento onde Tony entrou à esquerda, eu entro à direita. Faltam ainda duas quadras, mas sei que ela está lá. A placa de pare.
Você fechou os olhos e disse:
“Hannah, eu não estou bêbada.”
Bem, eu não acusei você de estar bêbada, Jenny. Estava me perguntando por que diabos você não conseguiu manter o carro na pista.
“Está chovendo, você se defendeu.
É verdade, estava mesmo. Chovendo quase nada.
Falei para você estacionar o carro.
Você falou para eu ser razoável. Nós duas morávamos ali perto e você se manteria em ruas vazias, com pouco trânsito — como se isso melhorasse alguma coisa.
Eu vejo a placa. Um poste de metal segurando uma placa de “pare”, com letras fluorescentes visíveis mesmo a essa distância. Na noite do acidente, porém, era uma placa diferente. As letras não eram fluorescentes e a placa havia sido amarrada a um poste de madeira.
“Hannah, não se preocupe”, você continuou. Deu risada. “Ninguém mais obedece a placas de ‘pare’. As pessoas atravessam o cruzamento direto. Agora, como não tem mais nenhuma placa ali, fazer isso não será mais ilegal. Está vendo? Vão me agradecer.
Eu pedi de novo para você estacionar o carro. Pegaríamos uma carona para casa com alguém da festa. A primeira coisa que eu faria de manhã seria pegar você em casa e levá-la até seu carro.
Você tentou mais uma vez:
“Hannah, escute...
“Estacione, eu pedi. “Por favor.
E, aí, você me mandou sair. Eu não queria. Tentei argumentar. Você teve sorte de ter atingido apenas uma placa. Imagine o que poderia acontecer se eu te deixasse guiar o caminho inteiro.
Novamente:
“Sai daqui.”
Fiquei sentada um tempão, de olhos fechados, escutando a chuva e os limpadores de para-brisa. “Hannah! Sai... daqui!‖”
Então, eu saí. Abri a porta do carro e dei um passo para fora. Mas não fechei a porta. Olhei de volta para você. E você ficou me encarando através do para-brisa através dos limpadores, agarrada ao volante.
Falta ainda uma quadra, mas a única coisa que consigo focalizar é a placa de “pare”, bem na minha frente.
Perguntei se podia usar seu telefone. Eu tinha visto o aparelho jogado ali, logo abaixo do som do carro. “Pra quê?, você quis saber.
Não sei bem por que contei a verdade. Devia ter mentido.
“Precisamos, pelo menos, avisar para alguém sobre a placa”, eu expliquei.
Você falava sem me olhar.
“Eles vão rastrear a ligação. Eles têm como rastrear telefonemas, Hannah.
Aí, você ligou o carro e me mandou fechar a porta.
Eu não fechei.
Você deu ré e eu pulei para trás, para evitar ser derrubada pela porta.
Você não se importou que a placa de metal estivesse raspando a parte de baixo do carro. Depois que você se livrou dela, deixou-a caída aos meus pés, torta e riscada com arranhaduras prateadas.
Você acelerou e eu captei o recado, recuando para cima da calçada. Aí, você arrancou, fazendo a porta bater com tudo, e saiu ganhando cada vez mais velocidade... fugindo, para se safar.
Na verdade, você se safou de coisa muito pior do que derrubar uma placa, Jenny.
E, mais uma vez, eu poderia ter impedido que a coisa acontecesse... de alguma forma.
Todos nós poderíamos ter impedido. Todos nós poderíamos ter impedido alguma coisa. Os boatos. O estupro. Você.
Alguma coisa eu poderia ter dito. Poderia ter pegado suas chaves. Ou, no mínimo, no mínimo, poderia ter esticado a mão e roubado seu telefone para chamar a polícia.
Na verdade, essa era a única coisa que poderia ter feito a diferença. Por que você conseguiu chegar em casa inteira, Jenny. Mas não era esse o problema. A placa havia sido derrubada, esse é que era o problema.
B-6 no mapa. A duas quadras da festa tem uma placa de “pare. Mas, naquela noite, durante algumas horas, não. E estava chovendo. E alguém estava tentando entregar as pizzas a tempo. E outro alguém, guiando na direção contrária, vinha entrando no cruzamento.
O velho.
Não havia nenhuma placa de “pare” naquela esquina. Não naquela noite. E um deles, um dos motoristas, morreu.
Ninguém sabia quem tinha causado aquilo. Nenhum de nós.
Nem a polícia.
Mas Jenny sabia. E Hannah. E talvez os pais da Jenny, porque alguém consertou o para-choque dela bem depressa.
Eu não sabia quem era o cara que estava naquele carro. Era um aluno do último ano. Quando vi sua foto no jornal, não o reconheci. Apenas um rosto, entre vários rostos do colégio que eu nunca conheci... e nunca conhecerei. Também não fui ao funeral dele. Talvez eu devesse ter ido, mas não fui. Não consegui. E agora tenho certeza que foi por um motivo óbvio.
Ela não sabia. Não sobre o homem no outro carro. Ela não sabia que era o homem que morava na casa dela. Na antiga casa dela. E isso me deixa contente. Algumas horas antes, ela tinha visto o cara tirar o carro da garagem. Tinha visto o cara sair guiando sem reparar nela.
Mas alguns de vocês foram até lá, ao funeral dele.
Ele saiu de carro para devolver uma escova de dentes. Foi o que sua esposa me contou, enquanto esperávamos que a polícia o trouxesse para casa. Ele estava indo para a outra ponta da cidade, para devolver a escova de dentes da neta.
Eles ficaram cuidando dela quando os pais saíram de férias e ela tinha esquecido, sem querer, a escova. Os pais da menina disseram que não havia necessidade de atravessar a cidade só por causa disso. Eles tinham um monte de escovas extras.
“Mas é isso que ele faz. Ele é assim”, a esposa dele falou.
E, aí, a polícia chegou.
Para aqueles que foram ao funeral, vou descrever como a escola ficou. Em duas palavras... ficou quieta. Cerca de um quarto da escola tirou a manhã de folga. Na maioria, alunos do último ano, é claro. Mas, para aqueles que foram à escola, os professores informaram que, caso tivéssemos esquecido de trazer um bilhete de casa e quiséssemos comparecer ao funeral, eles não nos dariam falta.
O sr. Porter disse que funerais podem fazer parte do processo de cicatrização. Duvidei muito disso. Não no meu caso.
Naquela esquina não tinha uma placa de “pare” naquela noite. Alguém a derrubara. E outro alguém... esta que vos fala... poderia ter impedido tudo.
Dois policiais ajudaram o marido daquela senhora a entrar, com o corpo tremendo. A esposa se levantou e foi até ele. Ela o envolveu com os braços e eles choraram.
Quando fui embora, fechando a porta atrás de mim, a última coisa que eu vi foi os dois parados em pé, no meio da sala de estar. Um apoiando o outro.
No dia do funeral, para que nenhum de vocês perdesse alguma matéria, não fizemos nada. Em todas as classes, os professores nos deram atividade livre. Livre para escrever
Livre para ler.
Livre para pensar.
E o que eu fiz? Pela primeira vez, pensei no meu próprio funeral.
Cada vez mais, bem genericamente, eu vinha pensando na minha própria morte. Apenas no fato de morrer. Mas, aquele dia, com todos vocês num funeral, comecei a pensar no meu próprio.
Alcanço a placa de “pare”. Estendendo as mãos, toco o poste frio de metal com a ponta dos dedos.
Eu conseguia imaginar a vida — a escola e tudo mais — continuando sem mim. Mas não conseguia imaginar meu funeral. Nem um pouco. Principalmente porque não conseguia imaginar quem compareceria, nem o que as pessoas diriam.
Eu não tinha... eu não tenho... nenhuma ideia do que vocês pensam de mim.
Eu também não, Hannah. Quando ficamos sabendo o que aconteceu, como seus pais não fizeram seu funeral nesta cidade, ninguém disse muita coisa sobre isso.
Quer dizer, tudo estava ali presente. Nós sentíamos. Sua carteira vazia. O fato de que você não voltaria mais. Ao mesmo tempo, ninguém sabia por onde começar. Ninguém sabia como começar essa conversa.
Duas semanas se passaram desde aquela festa. Até agora, Jenny, você conseguiu realizar a façanha de se esconder de mim. Suponho que seja compreensível. Você gostaria de esquecer o que fizemos — o que aconteceu com o seu carro e a placa de “pare. As repercussões.
Mas você nunca esquecerá.
Talvez não soubesse o que as pessoas pensavam de você porque elas mesmas não sabiam. Talvez você não tivesse passado informação suficiente para que elas pensassem alguma coisa, Hannah.
Se não fosse aquela festa, eu nunca teria conhecido a pessoa que você realmente era. Mas, por alguma razão, e sou muito grato por isso, você me deu essa chance. Mesmo que tenha durado tão pouco, me deu uma chance. E eu gostei da Hannah que conheci. Talvez eu pudesse até amá-la. Mas você tomou a decisão de não deixar acontecer, Hannah. Foi você quem decidiu.
Eu, no entanto, só terei de pensar nisso durante mais um único dia.
Dou as costas para a placa de “pare” e saio andando.
Se eu soubesse que dois carros iriam bater naquela esquina, teria corrido de volta para a festa e chamado a polícia imediatamente. Mas nunca imaginei que isso aconteceria.
Nunca.
Em vez de fazer isso, saí andando. Mas não de volta para a festa. Minha mente disparava em todas as direções. Eu não conseguia pensar direito. Não conseguia andar direito.
Sinto vontade de olhar para trás. Olhar por cima do ombro e ver a placa de “pare”, com suas letras fluorescentes enormes, implorando à Hannah. Pare!
Mas sigo em frente, me recusando a ver nessa coisa algo além do que ela é. É uma placa. Uma placa de “pare” numa esquina. Nada além disso.
Passei por uma rua atrás da outra, sem ideia de aonde eu estava indo.
Nós caminhamos por essas ruas juntos, Hannah. Trajetos diferentes, mas paralelos. Na mesma noite. Saímos caminhando pelas ruas para fugir. Eu, de você. E você, da festa. Mas não só da festa. De si mesma.
E, aí, eu ouvi os pneus cantando, me virei, e vi dois carros batendo.
Enfim, consegui chegar a um posto de gasolina. C-7 no mapa.
E usei um telefone público para chamar a polícia. Enquanto ele tocava, me peguei agarrada ao bocal do aparelho, uma parte minha esperando que ninguém atendesse. Eu queria ficar esperando. Queria que o telefone continuasse só tocando. Queria que a vida permanecesse bem ali... em pausa.
Não posso mais acompanhar o mapa dela. Não vou ao posto de gasolina.
Quando finalmente atenderam, engoli as lágrimas que molhavam meus lábios e falei para eles que na esquina da Tanglewood com a South...
Mas ela me cortou. Falou para eu me acalmar. Foi quando percebi a intensidade com que eu estava chorando. O quanto eu estava lutando para conseguir respirar direito.
Atravesso a rua e vou me afastando cada vez mais da casa da festa.
Nas últimas semanas, me desviei do meu caminho inúmeras vezes para evitar essa casa. Para evitar a lembrança, a dor, da minha única noite com Hannah Baker. Não tenho nenhuma vontade de ver a casa duas vezes na mesma noite.
Ela me falou que já tinham chamado a polícia, e que estavam a caminho.
Puxo a mochila para a frente e tiro o mapa.
Fiquei chocada. Não consegui acreditar que você tinha chamado a polícia, Jenny.
Desdobro o mapa e dou uma última olhada nele.
Mas eu não deveria ter ficado chocada. Porque, afinal, não foi você.
Amasso o papel todo e o esmago até ele virar uma bola do tamanho do meu punho.
Na escola, no dia seguinte, quando todo mundo recapitulava os acontecimentos da noite anterior, foi que descobri quem havia ligado. E não tinha sido para avisar que havia uma placa caída.
Enfio o mapa dentro de um arbusto, bem no fundo, e saio andando.
Tinha sido para avisar que tinha ocorrido um acidente. Um acidente causado por uma placa caída. Um acidente do qual eu não tinha conhecimento... até então.
Naquela noite, depois de desligar o telefone, continuei perambulando pelas ruas mais um pouco. Porque eu tinha de parar de chorar. Antes de voltar para casa, eu precisava me acalmar. Se meus pais me pegassem entrando de fininho com lágrimas nos olhos, fariam perguntas demais. Perguntas impossíveis de serem respondidas.
É isso que estou fazendo agora. Mantendo distância. Eu não chorei na noite da festa, mas mal consigo conter as lágrimas agora.
E não posso ir para casa.
Por isso, fiquei andando sem pensar quais ruas eu deveria pegar. E isso me fez me sentir bem. O frio. A neblina. Foi nisso que a chuva se transformara àquela altura. Numa leve neblina. E fiquei vagando durante horas, imaginando que a neblina engrossava e me engolia inteira. A ideia de desaparecer desse jeito tão simples assim — me fez feliz.
Mas, isso, como vocês sabem, nunca aconteceu.


Abro o walkman para virar a fita. Estou quase no fim.

Solto um suspiro trêmulo e fecho os olhos. O fim.

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