Fita 5: Lado A

A porta de vidro do Rosie’s se fecha atrás de mim e ouço três cadeados serem fechados imediatamente.
Para onde vou agora? Para casa? De volta ao Monet’s? Talvez eu possa ir até a biblioteca, no fim das contas. Posso ficar sentado do lado de fora, nos degraus de concreto. Escutando o resto das fitas no escuro.
–– Clay!
É a voz do Tony.
Faróis de luz intensa piscam três vezes. O vidro da janela do motorista está abaixado e Tony acena, me chamando até lá.
Puxo o zíper da jaqueta para cima, até o fim, e vou em sua direção. Mas não me debruço sobre a janela do carro. Não tenho vontade de conversar. Não agora.
Tony e eu nos conhecemos há anos. Muitas vezes fizemos trabalhos de escola juntos e zoamos depois da aula. Nesse tempo todo, nunca tivemos uma conversa mais profunda.
Receio que ele esteja querendo ter uma delas agora. Ficou sentado aqui esse tempo todo. Dentro do carro. Esperando. O que mais poderia ser?
Ele não quer olhar para mim. Estende a mão para ajustar o espelho lateral com o polegar. Fecha os olhos e deixa a cabeça cair para frente.
–– Entra, Clay.
–– Está tudo bem?
Depois de uma breve pausa, ele fez um movimento com a cabeça, assentindo lentamente.
Dou a volta pela frente do carro, abro a porta do passageiro e me sento, deixando um pé do lado de fora, sobre o asfalto.
Coloco a mochila, que leva caixa de sapatos da Hannah, no colo.
–– Feche a porta –– ele ordena.
–– Aonde vamos?
––E stá tudo sobre controle, Clay. Feche a porta.
Ele gira a manivela e sua janela desliza para cima.
Seu olhar passa do painel para o som, e desse para o volante.
Ele não quer me encarar.
O momento em que fecho a porta é como um gatilho de pistola dando partida a uma corrida: ele começa a falar.
–– Você é a nona pessoa que preciso seguir, Clay.
–– O quê? Do que você está falando?
–– O segundo jogo de fitas. Hannah não estava blefando. Eu estou com ele.
–– Não acredito.
Cubro o rosto com as mãos. Aquele latejar atrás da sobrancelha está de volta. Pressiono meu rosto com a base da mão. Com força.
–– Está tudo bem –– ele tenta me acalmar.
Não consigo olhar para o Tony. O que será que ele sabe? A meu respeito? O que será que ele ouviu?
— O que está tudo bem?
— O que você estava escutando lá dentro?
— O quê?
— Qual fita?
Posso tentar negar tudo, fingindo não ter a menor ideia do que ele está falando. Ou posso sair do carro e ir embora. Mas ele sabe de alguma coisa.
–– Está tudo bem, Clay. Na boa. Qual fita?
Com os olhos ainda fechados, pressiono os nós dos dedos contra a minha testa.
–– A do Ryan. O poema –– digo e olho para ele.
Ele encosta a cabeça no banco, de olhos fechados.
–– O que foi? –– quero saber.
Nenhuma resposta.
–– Por que ela deu as fitas para você?
Ele toca o chaveiro pendurado na ignição.
–– Posso dirigir enquanto você escuta a próxima fita?
–– Me conta, por que ela deu as fitas para você?
–– Eu conto. Desde que você escute a próxima fita agora.
–– Por quê?
–– Clay, eu não estou brincando. Escute a fita.
–– Então responda.
–– Por que é sobre você, Clay. –– Ele solta as chaves. –– Aproxima fita é sobre você.
Nada.
Meu coração não dá nenhum pulo. Meus olhos não piscam. Eu não respiro.
E aí.
Jogo o braço para o lado, com o cotovelo apoiado no assento.
Dou uma pancada violenta na porta e sinto vontade de bater com a cabeça na janela. Em vez disso, bato com ela no encosto do banco.
Tony coloca a mão no meu ombro.
–– Escuta a fita, e não tenta sair do carro –– ele avisa.
Ele dá a partida.
Com lagrimas escorrendo pelo rosto, viro para encará-lo. Ele mantém o olhar fixo a frente.
Abro a portinhola do walkman e retiro a fita. A quinta fita.
Um número nove em azul escuro, no canto. A minha fita. Eu sou o número nove.
Coloco a fita de volta no walkman e, segurando o aparelho com as mãos, fecho-o como se fosse um livro.
Tony engata a marcha e sai pelo estacionamento vazio em direção à rua.
Sem olhar, passo o polegar em cima do walkman, tateando a tecla que introduz a história.


Romeu, oh, Romeu. Onde estás, Romeu?
A minha história. A minha fita. É assim que ela começa.
Boa pergunta, Julieta. E bem que eu gostaria de saber a resposta.
Tony ainda tenta me acalmar, gritando por cima do som do carro em movimento.
–– Clay, está tudo bem!
Para ser totalmente sincera, nunca ouve um momento em que eu disse para mim mesma: Clay Jensen... ele é o cara.
Só de ouvir o meu nome minha dor de cabeça duplica. Sinto meu coração se retorcer em agonia.
Nem mesmo imagino quando eu comecei a conhecer o verdadeiro Clay Jensen ao longo dos anos. A maior parte do que eu sabia era informação de terceiros. E é por isso que eu queria conhecer o cara melhor. Porque tudo que eu ouvia  –– tudo mesmo! –– era bom.
Kristen Rennert, por exemplo. Ela sempre se veste de preto. Calças pretas. Sapatos pretos. Camisa preta. Se uma jaqueta for a única coisa preta que ela estiver usando, ela não vai tirá-la o dia inteiro. Na próxima vez que a virem, vocês vão reparar nisso. E, aí, não vai conseguir deixar de notar esse detalhe nunca mais.
Steve Oliver. Quando ele levanta a mão para dizer algo, ou fazer uma pergunta, sempre começa com “tudo bem”.
“Sr. Oliver?”
“Tudo bem, se Thomas Jefferson possuía escravos...”.
“Sr. Oliver?”
“Tudo bem, minha conta de 76,1225.”
“Sr. Oliver?”
“Tudo bem, posso sair um pouco da aula?
É sério. Todas as vezes. E agora vocês vão reparar nisso também...todas vezes.
Sim. Eu já reparei nisso, Hannah. Mas vamos logo ao que interessa. Por favor.
Escutar os outros falar sobre o Clay virou uma distração parecida. E, como disse, eu não o conhecia muito bem, mas minhas orelhas ficavam em pé sempre que eu ouvia o nome dele. Acho que eu queria ouvir alguma coisa –– qualquer coisa –– picante. Não porque quisesse espalhar a fofoca. Eu simplesmente não conseguia acreditar que alguém pudesse ser tão gente fina assim.
Dou uma olhada para Tony e reviro os olhos. Mas ele está dirigindo, olhando para frente.
Se ele fosse tão gente boa assim... maravilha. Sensacional! Mas aquilo se tornou um joguinho particular para mim. Quanto tempo eu ia passar sem escutar nada, a não ser coisas legais, sobre Clay Jensen?
Quando alguém tem uma imagem excepcional, as outras pessoas só estão à espreita para acabar com ela. Estão só esperando aquele defeito fatal aparecer.
Não no caso de Clay.
Olho de novo para Tony. Desta vez, ele fez uma careta irônica.
Espero que esta fita não faça vocês saírem correndo para desenterrar aquele segredo profundo, escuro e sujo, que ele tem... pode apostar que ele tem. Pelo menos um ou dois, certo?
Eu tenho alguns.
Mas, espera aí, não é isso que você está fazendo, Hannah? Está apresentando o cara como se ele fosse o Sr. Perfeição só para derrubar ele depois! Você Hannah Baker, era a pessoa à espreita. Esperando para encontrar um defeito. E você encontrou. Agora, não aguenta mais esperara para contar para todo mundo e arruinar a imagem dele.
E eu respondo... não.
Meu peito relaxa, soltando o ar que eu nem sabia que estava segurando.
E espero que não fiquem decepcionados. Espero que não estejam escutando essas fitas e salivando por alguma fofoca. Espero que essas fitas signifiquem mais do que isso para você.
Clay, querido, seu nome não pertence a essa lista.
Encosto a cabeça na janela e fecho os olhos, me concentrando na sensação que o contato com o vidro frio me traz. Talvez, se escutar as palavras e continuar concentrado no frio, eu consiga me segurar.
Você não pertence a essa lista do mesmo jeito que os outros. Mas você precisa estar aqui, para eu contar minha história. Para conta-la de maneira mais completa.

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––Por que sou obrigado a ouvir isso? –– explodo. –– Por que ela simplesmente não pulou o meu nome, se não pertenço a essa lista? –– Tony continua dirigindo. Quando olha para outro lugar, além do ponto que está diretamente à sua frente, é apenas por um breve instante, pelo retrovisor.
––Eu seria muito mais feliz se nunca estivesse escutado isso –– digo.
Tony fez sinal negativo com a cabeça.
–– Não. Você ficaria maluco se soubesse o que aconteceu com ela.
Olho fixamente através do para-brisa, para as faixas brancas brilhando à luz dos faróis. E sei que ele está certo.
–– Além disso, acho que ela queria que você soubesse.
Talvez, eu penso. Mas por quê?
–– Aonde vamos?
Ele não responde.


Tem, sim, algumas lacunas importantes na minha história. Algumas partes por que eu simplesmente não descobrir como contar. Ou que eu não conseguiria dizer em voz alta. Acontecimentos com os quis não sei como lidar...como os quais nunca saberei como lidar. E,se eu nunca tiver que contá-los em voz alta, então, nunca terei de pensar sobre eles e tudo que eles implicam.
Será que isso diminui algumas das histórias de vocês? Suas histórias seriam menos insignificantes porque não estou contando tudo?
Não.
Na verdade, isso amplifica as histórias.
Vocês não sabem o que eu estava se passando no resto da minha vida. Em casa. Nem mesmo na escola. Não sabem o que se passa na vida de ninguém, a não ser na de vocês. E quando estragam uma parte da vida de uma pessoa, não estão estragando apenas aquela parte. Infelizmente, não dá para ser tão preciso ou seletivo. Quando você estraga parte da vida de alguém, você estraga a vida toda dessa pessoa.
Tudo... é afetado.
As próximas historias baseiam-se em torno de uma noite.
A festa.
Concentram-se em torno da nossa noite, Clay. E você sabe o que eu quero dizer com a nossa noite, porque, ao longo desses anos que frequentamos a mesma escola e trabalhamos juntos no cinema, houve apenas uma noite em que nos aproximamos.
Em que realmente nos conhecemos.
Essa noite arrasta muitos de vocês para essa noite também...
Um de vocês, inclusive, pela segunda vez. Uma noite ao acaso, que ninguém pode apagar.
Eu odeio aquela noite, antes mesmo dessas fitas, eu já odiava.
Naquela noite, eu corri para contar a uma senhora de idade que o marido dela estava bem. Que tudo ia ficar bem. Mas eu estava mentindo. Porque, enquanto eu corria para confortá-la, o outro motorista estava morrendo.
E o homem, quando chegou em casa e encontrou a esposa, também sabia disso.
Espero que ninguém mais, além de vocês que estão na lista, ouça as fitas, para que as mudanças que elas possam gerar na vida de vocês sejam inteiramente de sua responsabilidade. É claro que, se as fitas vierem a público, vocês terão de lidar com as consequências totalmente fora de controle. Por isso, eu espero que estejam passando as fitas adiante. Mesmo.
Dou uma olhada no Tony. Será que ele realmente faria isso? Será que conseguiria? Entregaria as fitas para alguém que não estava na lista? Quem?
Para alguns de vocês, essas consequências eram mínimas. Vergonha. Ou constrangimento. Mas, para outros, é difícil dizer. Perder o emprego? Ir para a cadeia? Vamos manter isso entre nós, certo?
Então, Clay, nem era para eu estar naquela festa. Eu fui convidada, mas não era para eu estar lá. Minhas notas vinham caindo bem rapidamente. Meus pais pediam aos professores relatórios sobre meu progresso toda a semana. E, quando nenhum dos relatórios trouxe alguma melhora, eu fui presa.
Isso significa ter apenas uma hora para chegar em casa depois da escola. Uma hora era o único tempo livre que eu teria até conseguir melhorar minhas notas.
Paramos em um semáforo. Mesmo assim, o Tony mantém o olhar fixo à frente. Será que não quer me ver chorar? Ele não precisa se preocupar. Não vou fazer isso. Não agora.
Durante um dos meus momentos dedicados a ouvir fofocas sobre Clay Jensen, descobri que ele estaria na festa. O quê? Clay Jensen numa festa? Algo inédito!
Eu estudo nos fins de semana. Na maioria das matérias, temos provas na segunda-feira. Não é minha culpa.
Foi a primeira coisa em que pensei, e foi também o que as pessoas a minha volta comentaram. Ninguém conseguia entender por que você não era visto em festas. É claro que o pessoal tinha todo tipo de teoria. Mas adivinha só! Você acertou.
Nenhuma delas era ruim.
Dá um tempo.
Como vocês sabem, já que Tyler não é alto o suficiente para espiar numa janela que está no segundo andar, sair de fininho do meu quarto não era nada difícil. E, naquela noite, eu precisava fazer isso. Mas não tirem conclusões precipitadas. Eu já tinha saído escondida de casa antes daquela noite duas vezes.
Tá, três vezes. Talvez quatro. No máximo.
Para aqueles que não sabem de qual festa estou falando, tem uma estrela vermelha no mapa. Uma estrela bem grande, totalmente pintada de vermelho.C-6. Cottonwood, 512.
Será que é onde estamos indo?
Aaaah... então agora vocês sabem. Alguns de vocês sabem exatamente onde se encaixam. Mas terão de esperar até seu nome aparecer para ouvir o que eu tenho para contar. Para ouvir quanto eu vou contar.
Naquela noite, eu decidi que caminhar até a festa seria agradável. Relaxante. Tinha chovido muito durante a semana e me lembro que as nuvens ainda pairavam baixas e pesadas. O ar também estava quentinho para aquela hora. De longe, meu clima favorito.
O meu também.
Magia pura.
É engraçado. Passando pelas casas a pé, a caminho da festa, tive a sensação que a vida continha muitas possibilidades. Possibilidades ilimitadas. E, pela primeira vez em muito tempo, senti esperança.
Eu também senti. Eu me forcei a sair de casa e ir àquela festa. Eu estava pronto para que algo novo acontecesse. Algo empolgante.
Esperança? Bem, acho que interpretei mal as coisas.
Teria ido, sim. Mesmo que o resultado permanecesse igual.
Vesti uma saia preta, com uma malha de capuz da mesma cor. E, a caminho de lá, fiz um desvio de três quadras, até minha casa antiga, aquela em que havia morado quando nos mudamos para a cidade. A primeira estrela vermelha do primeiro lado da primeira fita. A luz na entrada da casa estava acesa e, dentro da garagem, tinha um carro com o motor ligado.
Mas a porta da garagem estava fechada.
Será que sou o único que sabe disso? Será que mais ninguém sabe que esse é o lugar onde ele morava? O homem do acidente. O homem cujo o carro matou um aluno da nossa escola.
Parei de andar e, durante um tempo que me pareceram durar vários minutos, fiquei só observando de longe. Hipnotizada. Outra família na minha casa. Não tinha ideia de quem eles eram, nem de como eram –– como era a vida deles.
A porta começou a subir e, iluminada pelo brilho vermelho dos faróis traseiros, a silhueta de um homem terminou de empurrá-la até em cima. Ele entrou no carro, desceu de ré a rampa da garagem e partiu.
Por que ele não parou, nem me perguntou a razão de eu estar ali, olhando fixamente para sua casa, eu não sei. Talvez ele tenha pensado que eu estava esperando ele desaparecer antes de seguir meu caminho alegre e saltitante.
Mas, qualquer que tenha sido o motivo, aquilo me deu a noção do absurdo da situação toda. Duas pessoas –– eu e ele ––, uma casa. O homem saiu guiando, sem a menor ideia de sua ligação comigo, a garota na calçada. E, por alguma razão, naquele momento, senti o ar pesado. Carregado de solidão. E aquela sensação permaneceu comigo o resto da noite.
Até os melhores momentos da noite foram afetados por esse incidente isolado –– esse não incidente ––, diante da minha antiga casa e a falta de interesse dele por mim foi como um lembrete. Mesmo que eu tivesse uma história naquele lugar, não importava. Não dava para voltar atrás, para o jeito que as coisas eram. Do jeito que você pensava que elas eram.
Tudo que agente realmente possui... é o agora.
Nós que estávamos na fita também não podemos voltar atrás.
Nunca poderemos não encontrar um pacote na porta de casa. Ou na nossa caixa de correio. A partir daquele momento, nos tornamos diferentes.
O que explica minha reação exagerada, Clay. E é por isso que você receberá essas fitas. Para explicar. Para dizer que sinto muito.
Será que ela se lembra? Será que se lembra que eu pedi desculpas naquela noite? Será por isso que ela está pedindo desculpas para mim?
A festa já rolava a toda quando eu cheguei lá. A maioria das pessoas, diferente de mim, não teve que esperar os pais caírem no sono.
A galera de sempre estava reunida na porta da frente da festa, bêbados além da conta, cumprimentando todo mundo com o copo de cerveja erguido no ar. Eu achava que Hannah fosse um nome difícil de falar enrolando a língua, mas aqueles caras conseguiam fazer isso numa boa, metade deles ficou repetindo meu nome, tentando pronuncia-la corretamente, enquanto a outra metade gargalhava.
Eles eram inofensivos. Bêbados divertidos compõem um ingrediente simpático em qualquer festa. Não procuram briga. Nem querem faturar ninguém. Querem apenas ficar bêbados e dar risada.
Eu me lembro desses caras. Era como se fossem os mascotes da festa. “Clay!Quiquicê ta fazendo aqui? Bah-há-há-há!”
A música estava alta e ninguém dançava. Poderia ser uma festa qualquer exceto por um detalhe.
Clay Jensen.
Tenho certeza que você ouviu muitos comentários sarcásticos ao entrar lá, mas na hora em que eu cheguei, para todas as pessoas, você era apenas um elemento da festa. Só que, diferente de para todas as outras pessoas, você era o único motivo de eu ter ido lá.
Com tudo que estava passando na minha vida –– e na minha cabeça ––, eu queria conversar com você. Conversar pra valer. Apenas uma vez. Uma chance que a gente nunca parecia ter na escola. Nem no trabalho. Uma chance de perguntar: quem é você?
Não tínhamos tido essa chance porque eu tinha medo. Medo de não ter chance com você.
Era isso que eu pensava. E, para mim, estava tudo bem desse jeito. E se eu conhecesse você e você acabasse sendo exatamente como diziam? E se não fosse a pessoa que eu esperava?
Isso, mais do que tudo, me magoaria muito.
E, quando eu estava ali parada na cozinha, na fila para que enchessem meu copo pela primeira vez, você chegou por trás de mim.
“Hannah Baker, você disse, e eu me virei na sua direção. “Hannah...oi.”
Quando ela chegou na festa, quando ela passou pela porta da frente, me pegou desprevenido. E eu, como um doido, atravessei a cozinha correndo, até os fundos da casa.
Era cedo demais, eu repetia para mim mesmo. Eu tinha ido a festa dizendo a mim mesmo que, se Hannah Baker aparecesse, eu ia conversar com ela. Estava na hora. Não importa quem estivesse por lá, eu ia manter meus olhos focados nela e iríamos conversar.
Aí, ela entrou, e eu pirei.
Eu não conseguia acreditar. De repente, saído do nada, lá estava você.
Não, não foi de repente. Primeiro eu fiquei rodando pelo quintal, me xingando por ser um garotinho assustado. Depois, saí, inteiramente decidido a voltar a pé para casa.
Mas, na calçada, bati em mim mesmo mais um pouco. Aí, andei de volta até a porta da frente. Os bêbados me cumprimentaram novamente e fui direto até você.
Foi tudo, menos de repente.
“Não sei por quê, mas acho que precisamos conversar”, você disse.
E foi preciso toda coragem do mundo para levar esse papo adiante. Coragem e dois copos de cerveja.
E eu concordei, com um sorriso que era provavelmente o mais bobo do mundo estampado no rosto.
Não. O mais lindo.
Reparei no batente da porta atrás de você, que dava para a cozinha. Tinha uma serie de marcas a lápis de cor e caneta nele, registrando a rapidez com que as crianças da casa estavam crescendo. E me lembrei de ver minha mãe apagar essas marcas da porta da nossa antiga cozinha, se preparando para vender a casa, para nos mudarmos para cá.
Eu notei. Vi algo na sua expressão quando olhou por cima do meu ombro.
De qualquer maneira, você viu que meu copo estava vazio, derramou metade da sua bebida dentro dele e perguntou se aquele seria um bom momento para a gente conversar.
Por favor, não tire conclusões precipitadas, pessoal. Dá, sim, a impressão de que o cara estava na maior malandragem, querendo embebedar a garota, mas não era nada disso. Não foi o que me pareceu.
Não foi mesmo. Ninguém vai acreditar, mas é verdade.
Porque, se esse fosse o caso, ele teria me incentivado a encher o copo inteiro.
Fomos para a sala de estar, onde uma ponta do sofá estava ocupada.
Por Jéssica Davis e Justin Foley.
Mas havia bastante espaço na outra ponta, e nos sentamos.
Qual foi a primeira coisa que fizemos? Colocamos os copos de lado e começamos a conversar. Assim...mesmo...desse jeito.
Ela devia saber que eram eles. Jéssica e Justin. Mas não disse os nomes. O primeiro garoto que ela beijou ficando com a garota que lhe agrediu no Monet’s. Era como se ela não pudesse escapar do passado.
Tudo o que eu podia esperar de melhor estava acontecendo. As perguntas eram intimas, como se estivéssemos tirando o atraso do tempo que havíamos deixado passar. Nenhuma pergunta, porém, parecia evasiva.
A voz dela, como se isso fosse fisicamente possível, sai dos fones dando uma sensação de calor. Coloco as mãos em concha sobre os ouvidos, para não deixar as palavras escaparem.
E elas não eram evasivas. Porque eu queria que você me conhecesse.
Foi maravilhoso. Eu não conseguia acreditar que Hannah e eu estávamos finalmente conversando. Pra valer. E eu não queria que aquilo acabasse.
Eu adorei conversar com você, Hannah.
Parecia que você podia me conhecer. Parecia que você conseguia entender tudo que eu contava. E, quanto mais falávamos, mais eu sabia porquê. As mesmas coisas nos empolgavam. As mesmas coisas nos interessavam.
Você poderia ter me contado qualquer coisa, Hannah.
Naquela noite não havia nenhum limite. Eu teria permanecido ali até você se abrir de vez e botar tudo pra fora, mas você não fez isso.
Eu queria contar tudo pra você. E isso machucava, porque algumas coisas eram assustadoras demais. Algumas coisas nem eu entendia. Como poderia contar a alguém –– alguém que eu estava conversando pra valer, pela primeira vez –– tudo que eu estava pensando?
Eu não conseguia. Era cedo demais.
Mas não era, não.
Ou, talvez, fosse tarde demais.
Mas você está me contando agora. Por que esperou até agora.
As palavras dela não estão mais calorosas. Talvez ela quisesse que eu escutasse dessa forma, mas, em vez disso, elas estão clamando. Na minha mente. No meu coração.
Clay, você ficava falando que sabia que as coisas rolariam facilmente entre nós. Você sentia isso há muito tempo, você disse. Você sentia que a gente ia se dar muito bem. Que a gente tinha uma conexão.
Mas como? Você jamais explicou isso. Como você poderia saber? Por que eu sabia o que as pessoas diziam a meu respeito. Eu ouvia todos os boatos e mentiras que sempre farão parte de mim.
Eu sabia que não era verdade, Hannah. Quer dizer, eu esperava que não fosse verdade. Mas tinha medo demais para tentar descobrir.
Eu estava dilacerada. Se apenas tivesse conversado com você antes. Nós poderíamos ter sido...nós poderíamos...sei lá. Mas as coisas tinham ido longe demais naquela altura. Eu estava decidida. Não sobre acabar com a minha vida. Ainda não. Estava decidida a deixar a vida rolar superficialmente, até terminar o colégio. Decidida a jamais me aproximar de alguém. Esse era meu plano. Me formar e ir embora.
Mas, aí, eu fui a uma festa. Fui a uma festa para encontrar você.
Por que fiz isso? Para me fazer sofrer? Por que era isso que eu estava fazendo: me odiando por ter esperado tanto. Me odiando por que não era justo fazer isso com você.
A única coisa injusta são essas fitas, Hannah, porque eu estava ali por você. Nós estávamos conversando. Você poderia ter dito qualquer coisa. Eu teria escutado absolutamente qualquer coisa.
O casal sentado ao nosso lado no sofá, a garota estava bêbada e gargalhando, e esbarrando em mim com frequência. Uma coisa engraçada no começo, mas foi perdendo a graça rapidinho.
Por que Hannah não diz o nome dela?
Comecei a achar que talvez ela não estivesse tão bêbada assim. Talvez fosse tudo um show para o cara que ela estava conversando...só momentos que eles estavam, de fato, conversando. Talvez ela quisesse o sofá inteiro só pra ela e seu ficante.
Por isso, Clay e eu saímos dali.
Circulamos pela festa, gritando acima da música em qualquer ambiente que fossemos. Até que acabei conseguindo, com sucesso, mudar o rumo da conversa. Chega de assuntos grandiosos e pesados.Nós precisávamos sair. Mas aonde quer que a gente fosse estava barulhento demais para escutar o que falávamos.
Por isso, fomos parar na porta de um quarto vazio.
Lembro de tudo que aconteceu em seguida. Lembro perfeitamente. Mas como será que ela lembra?
Enquanto ficamos parado ali, encostados no batente da porta, com as bebidas na mão, não conseguimos parar de rir. E, ainda assim, a solidão com que eu entrara na festa voltou correndo.
Eu não estava sozinha. Eu sabia disso. Pela primeira vez em muito tempo, eu estava me conectando –– estava conectada –– a outra pessoa. Como poderia estar sozinha?
Você não estava, Hannah. Eu estava lá.
Porque eu queria estar. É só isso que eu posso dizer. É a única coisa que faz sentido pra mim. Quantas vezes eu tinha permitido a mim mesma me abrir para alguém, para depois a pessoa jogar isso na minha cara?
Tudo parecia correr bem, mas eu sabia que a situação tinha potencial para se tornar horrorosa. Muito, muito mais dolorosa do que das outras vezes.
Isso não ia acontecer de jeito nenhum.
Lá estava você, então, permitindo que eu me aproximasse. E quando não conseguia fazer isso, quando puxei a conversa para assuntos mais leves, você me fez rir. E você estava hilariante, Clay. Você era exatamente o que eu precisava.
Por isso, eu te beijei.
Não. Eu te beijei, Hannah.
Um beijo longo e lindo.
E o que foi que você disse, quando a gente parou, para recuperar o fôlego? Com um sorrisinho tão gracioso, de menino, você perguntou:
“Por que você parou?
Está certo. Você me beijou.
Eu respondi:
“Você é tão bobo!
E nos beijamos mais.
Tão bobo. É, eu me lembro disso também.
Até que acabamos fechando a porta e entrando mais para o fundo do quarto. Ficamos de um lado da porta. E o resto da festa, com aquela música alta, agora abafada, ficou do outro.
Inacreditável. Nós estávamos juntos. Era isso que eu ficava pensando o tempo todo. Inacreditável. Tive de me concentrar muito para impedir que essa palavra escapasse da minha boca.
Alguns de vocês talvez estejam se perguntando: como nós nunca ouvimos falar disso? Nós sempre descobrimos com quem Hannah ficava.
Porque eu nunca contei.
Errado. Vocês pensavam que descobriam. Não estão me escutando? Ou só prestaram atenção à fita que tinha seu nome? Porque eu posso contar nos dedos de uma só mão –– sim, apenas uma –– com quantos caras eu fiquei. Mas vocês provavelmente pensavam que eu precisaria das duas mãos e dos pés, só para começar, certo?
O que foi? Não acreditam em mim? Estão chocados? Adivinhem só uma coisa... eu não me importo. A última vez em que eu me importei com o que alguém pensava de mim foi nessa noite. E essa foi a última noite.
Solto meu sinto de segurança e me inclino para frente.
Coloquei a mão sobre a boca e a pressiona para não gritar.
Mas eu grito assim mesmo, com o som abafado pela minha palma.
E Tony continua guiando.
Agora, se acomodem de modo bem confortável, porque vou contar o que aconteceu naquele quarto entre mim e Clay. Estão prontos?
Nós nos beijamos.
É isso. Nós nos beijamos.
Olho para o walkman. Está escuro demais para ver as engrenagens por trás da janelinha de plástico, puxando a fita de um lado para o outro, mas preciso focalizar a atenção em alguma coisa, por isso eu tento enxergá-las. E me concentrar no ponto onde as duas engrenagens devem estar é o mais perto que consigo chegar de olhar dentro dos olhos de Hannah enquanto ela conta a minha história.
Foi maravilhoso, nós dois deitamos ali naquela cama. Uma das mãos dele apoiada no meu quadril. Seu outro braço aninhando minha cabeça como um travesseiro. Meus dois braços o abraçavam, tentando puxa-lo para mais perto. E, por mim, eu queria mais.
Foi quando eu disse aquilo. Quando cochichei para ela: “Eu sinto muito”. Porque eu me sentia, por dentro, tão feliz e tão triste ao mesmo tempo. Triste porque eu tinha demorado tanto para chegar ali. Feliz por termos chegado ali juntos.
Os beijos pareciam primeiros beijos. Beijos que diziam que eu poderia ter começado de novo, se quisesse. Com ele.
Mas começar de novo depois do quê?
E foi aí que eu me lembrei de você, Justin. Pela primeira vez em muito tempo, pensei em nosso primeiro beijo. Meu primeiro beijo de verdade. Lembrei de toda a expectativa anterior a ele. Lembrei do seus lábios pressionados contra os meus.
E, então, me lembrei de como você arruinou tudo.
“Para, eu disse ao Clay.
E minhas mãos pararam de puxá-lo para mais perto.
Você empurrou meu peito.
Dava para você sentir o que estava se passando comigo, Clay? Você percebeu? Você deve ter percebido.
Não. Você escondeu. Você nunca me contou o que estava se passando com você, Hannah.
Fechei os olhos, apertando-os tanto que doía. Tentando empurrar para longe tudo o que eu via dentro da minha cabeça. O que eu via era todo mundo desta lista...e mais gente ainda. Todo mundo até aquela noite. Todo mundo que tinha me deixado tão intrigada com a reputação do Clay –– sua reputação––, que era tão diferente da minha.
Não, nós éramos iguais.
Não consegui evitar. O que todo mundo pensava de mim estava fora do meu controle. Clay, a sua reputação era merecida. Mas a minha...a minha não era. E lá estava eu, com você. Acrescentado mais um cara a minha reputação.
Não era nada disso. Para quem eu iria contar, Hannah?
“Para, repeti.
Dessa vez, coloquei as mãos no seu peito e empurrei você para longe. Virei de lado, enterrando meu rosto no travesseiro.
Você começou a falar, mas fiz você parar. Pedi que fosse embora. Você começou a falar novamente e gritei. Gritei dentro do travesseiro.
E, aí, você parou. Você me ouviu.
O colchão se movimentou quando você se levantou para sair da cama. Você demorou uma eternidade para ir embora, para perceber que eu estava falando sério.
Estava esperando que você me mandasse parar de novo.
Parar de ir embora.
Mesmo com os olhos ainda fechados, enterrados no travesseiro, a luz se alterou quando você finalmente abriu a porta. Ela ficou mais forte. Aí, enfraqueceu de novo...e você tinha ido.
Por que obedeci? Por que deixei você ali? Ela precisava de mim e eu sabia disso.
Eu estava assustado. Mais uma vez, eu tinha me deixado assustar.
Escorreguei para fora da cama e caí no chão. Fiquei sentado ali,ao lado da cama, abraçando os joelhos... e chorando.
Aqui, Clay, é o momento em que termina sua história.
Mas não devia ter terminado. Eu estava ali por sua causapor você, Hannah. Você poderia ter tentado se abrir, mas não fez isso. Foi sua escolha. Você teve escolha e me empurrou para longe. Eu teria ajudado. Eu queria ajudar.
Você saiu do quarto e nunca mais nos falamos.
Você estava decidida. Não importa o que você diga, estava decidida.
Nos corredores do colégio, você tentou cruzar seu olhar com o meu, mas eu sempre desviava. Porque, naquela noite, quando cheguei em casa, arranquei uma folha do meu caderno e escrevi um nome atrás do outro, atrás do outro. Os nomes que passaram na minha cabeça quando parei de te beijar.
Havia tantos nomes, Clay. Três dúzias, pelo menos.
Primeiro desenhei um círculo em torno do seu nome, Justin. E tracei uma linha entre você e Alex. Desenhei um círculo em torno do Alex e tracei uma linha até Jéssica, deixando de lado os nomes que não se interligavam –– que se encontravam ali apenas por acaso ––, incidentes isolados.
Minha raiva e minha frustração em relação a todos vocês viraram lagrimas, que viraram raiva e ódio toda vez que eu encontrava uma nova conexão.
E, aí, cheguei a Clay, a razão pela qual tinha ido à festa. Desenhei um círculo em torno do seu nome e tracei uma linha...de volta. De volta a um nome anterior.
Justin.
Na verdade, Clay, logo depois que você saiu e fechou a porta... essa pessoa abriu a porta de novo.
Na fita de Justin, a primeira fita, ela disse que o nome dele reapareceria. E ele estava nessa festa. No sofá, com Jéssica. Mas essa pessoa já recebeu as fitas. Por isso, Clay, simplesmente pule-o, quando for passá-las adiante. De maneira indireta ele fez com um novo nome fosse acrescentado à lista. E é esta pessoa que deve receber as fitas de você.
E, sim, Clay... eu também sinto muito.


Meus olhos ardem. Não por causa do sal das lágrimas, mas porque não os fechei mais depois que fiquei sabendo que Hannah chorou quando eu saí do quarto.
Cada músculo do meu pescoço queima de vontade de virar para o outro lado. De olhar pela janela, de tirar os olhos do walkman e deixá-los se fixarem no nada. Mas não consigo me mexer, quebrar o efeito das palavras dela.
Tony desacelera o carro e estaciona perto da guia.
–– Você está bem?
É uma rua parecida, mas não é a da festa.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
––Você vai ficar bem? –– ele insiste.
Eu me inclino para trás, apoiando a cabeça no encosto, e fecho os olhos.
–– Eu sinto falta dela.
–– Eu também sinto –– ele confessa.
Quando abro os olhos, a cabeça de Tony está abaixada. Será que está chorando? Ou, quem sabe, tentando não chorar.
–– A questão é que não tinha sentido falta dela até agora –– Digo.
Ele encosta no assento e olha para o meu lado.
–– Eu não sabia que conclusões tirar daquela noite –– continuei. ––De tudo o que aconteceu. Eu gostava dela a distância, há tanto tempo, mas nunca tinha tido uma oportunidade de contar isso para ela.
Olho para baixo, para o walkman.
–– Tivemos só uma noite e, no final daquela noite, parecia que eu a conhecia menos ainda do que antes. Mas agora eu sei. Sei onde ela estava com a cabeça naquela noite. Agora eu sei o que estava se passando com ela.
Minha voz falha e, ao falhar, deixa vir uma enxurrada de lágrimas.
Tony não responde. Ele olha para fora, para a rua deserta, me deixando sentado no carro, apenas sentindo falta dela. Sentindo falta dela a cada sopro de ar que inspiro. Sentindo falta dela com um coração que, por si só, se sente tão frio, mas que aquece quando os pensamentos sobre ela fluem através de mim.
Passo a manga da jaqueta embaixo dos olhos.
Engasgo, retendo as lágrimas, e dou risada.
–– Obrigado por escutar tudo isso. Na próxima, você pode mandar eu parar, numa boa –– eu tento deixar o clima mais leve.
Tony liga a seta, mira por cima do ombro e nos leva de volta à pista. Não olha para mim.

–– Não tem do que me agradecer.

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