Fita 4: Lado A

Na volta, o sinal vermelho estava piscando, mas atravesso correndo pela faixa de pedestre mesmo assim. O estacionamento estava menos cheio do que antes. Mas não vejo o carro da minha mãe.
A algumas lojas de distância da Rosie’s, paro de correr. Me apoio numa vitrine de um pet shop, tentando recuperar o fôlego. Inclino o corpo para a frente, com as mãos nos joelhos, esperando que tudo desacelere antes que ela chegue.
Impossível. Embora minhas pernas tenham parado de correr, minha mente continua agitada. Deixo o corpo escorregar para baixo, contra o vidro frio, dobrando lentamente as pernas, fazendo força para conter as lágrimas.
Mas o tempo está se esgotando, logo minha mãe estará aqui.
Respirando fundo, me levanto e vou até o Rosie’s, abro a porta.
O ar quentinho lá de dentro é uma mistura de hambúrguer e açúcar queimando. Três das cincos mesas encostada na parede estavam ocupadas. Em uma delas um casal bebe milk-shake, comendo pipoca do Crestmont. Nas outras duas, há alunos estudando, livros cobrem o tampo das mesas, deixando espaço apenas para bebidas e duas cestinhas de batatas fritas. Felizmente, a mesa distante, ao fundo, estaá ocupada. Não vou precisa decidir se devo sentar lá ou não.
Em uma das maquinas de fliperama, tem um aviso colado com fita adesiva e rabiscado a mão: “QUEBRADA”. Um aluno do último ano, que acho que conheço, está de pé, diante da outra máquina mandando ver.
Conforme Hannah sugeriu, me sento no balcão vazio.
Atrás do balcão, um homem branco arruma os talheres, separando-os em duas bacias de plástico. Ele acena para mim.
— Quando quiser é só pedir...
Puxo um cardápio enfiado entre dois porta-guardanapos prateados. A frente do cardápio conta uma longa historia sobre o Rosie’s, com foto preto e branco mostrando a lanchonete nas últimas quatro décadas. Abro o cardápio, e nada nele me parece interessante. Não por enquanto.
Quinze minutos. Foi o tempo que a Hannah falou para esperar. Quinze minutos e só então devo fazer o pedido.
Havia algo errado quando minha mãe ligou. Havia algo de errado comigo, eu sei que ela sentiu isso em minha voz. Mas será que ela escutaria as fitas no caminho pra descobri por quê?
Que grande idiota eu sou. Devia ter dito que eu iria pegá-las.
Como não fiz isso, agora tenho que espera para ficar sabendo.
O garoto que comia pipoca pede a chave do banheiro. O homem atrás do balcão aponta para a parede. Há duas chaves penduradas em argolas de latão. Uma delas tem um cachorro azul de plástico preso no chaveiro. A outra, um elefante cor-de-rosa. Ele agarra o cachorro azul e atravessa o corredor.
Depois de guarda as bacias de plástico de baixo do balcão, o homem desatarraxa a tampa de saleiros de saleiros e pimenteiros sem presta atenção em mim. E isso é ótimo.
— Você já fez o pedido?
Giro para o lado. Minha mãe senta no banco próximo ao meu e pega um cardápio. Ao lado dela, em cima do balcão, está a caixa de sapato da Hannah.
— Você vai ficar? — pergunto.
Se ela ficar podemos conversar. Eu não ligo. Seria legal liberar um pouco meus sentimentos. Descansar.
Ela olha dentro dos meus olhos e sorrir. Aí coloca uma mão em cima da barriga e se esforça para transformar um sorriso numa cara feia.
— Acho que não é boa ideia.
— Você não está gorda, mãe.
Ela empurra a caixa de fitas para mim.
— Onde está seu amigo? Você não está fazendo trabalho da escola com alguém?
Certo. O trabalho da escola.
— É que ele teve de ir ao banheiro.
Ela olha sobre meu ombro, apenas por um instante. E pode ser que eu esteja errado, mas acho que estava conferindo se as duas chaves estavam penduradas na parede.
Graças a Deus não estavam.
— Você trouxe dinheiro suficiente? — minha mãe quer saber.
— Pra quê?
— Pra comer alguma coisa.
Ela coloca o cardápio de volta no lugar, bate com a unha no cardápio. — Os de chocolate maltados são divinos.
– Você já comeu aqui?
Fico um pouco surpreso. Nunca vi adultos no Rosie’s antes.
Minha mãe ri. Coloca uma mão sobre minha cabeça e com o polegar alisa as rugas na minha testa.
– Não fique tão espantado, Clay. Este lugar existe há séculos.
Ela tira uma nota de dez dólares e põe em cima da caixa de sapatos.
– Peça o que você quiser, mas tome um milk-shake de chocolate maltado por mim.
Quando ela se levanta, a porta do banheiro se abre com um ruído esganiçado. Viro a cabeça e vejo o cara pendurar de volta a chave do cachorro azul. Ele pede desculpas à namorada por demora tanto e beija sua testa antes de sentar.
— Clay? — minha mãe diz.
Antes de me vira de volta para ela, fecho os olhos apenas por um instante e respiro.
— Sim?
Ela força um sorriso.
— Não fique muito tempo fora de casa.
É um sorriso magoado.
Restam quatro fitas. Sente histórias. Cadê o meu nome?
Olho dentro dos olhos dela.
— Talvez demore um pouco.
Olho para baixo. Para o cardápio.
— É um trabalho da escola.
Ela não diz nada, mas, no canto do olho, posso vê-la parada ali. Ela levanta uma mão. Fecho os olhos e sinto seus dedos tocarem o topo da minha cabeça, e depois escorregarem até a minha nuca.
— Cuidado.
Faço um movimento positivo com a cabeça.
E ela vai embora.
Tiro a tampa da caixa de sapatos e desenrolo o plástico-bolha. As fitas não foram tocadas.


A matéria favorita de todo mundo... tudo bem, a matéria obrigatória favorita de todo mundo... é uma comunicação entre jovens. É meio que uma eletiva não eletiva. Todo mundo faria essa matéria, mesmo se não fosse obrigatória, porque é muito fácil conseguir a média.
E, na maioria das vezes, é divertida. Eu faria essa matéria só por isso.
Tem pouquíssima lição de casa e não esqueçam dos pontos extras por participação na aula. Pois é, incentivam agente a berrar dentro da sala. Como não gostar?
Eu me abaixo e agarro a mochila, erguendo-a até colocá-la em cima do banco onde minha mãe estava sentada há apenas alguns instantes.
Depois de me sentir cada vez mais colocada de lado, a aula de comunicação entre jovens tornou-se meu porto seguro na escola. Sempre que eu entrava naquela aula, sentia vontade de abrir os braços e grita:
“Um, dois, três, podem sair da toca!
Enrolo as três fitas que eu já escutei dentro do plástico-bolha e as coloco de volta na caixa de sapato. Pronto. Trabalho encerado.
Durante um período de aula por dia, vocês não tinham permissão para de me tocar, nem dar risadinhas de mim pelas costas, não importava qual fosse o ultimo boato. A Sra. Bradley não gosta de pessoas que dão risadinhas dos outros.
Abro o zíper do bolso maior da mochila e enfio a caixa de sapatos de Hannah dentro dele.
Esta era a regra número um, desde o primeiro dia. Se alguém desse alguma risadinha de algo que outra pessoa tinha dito, ficava devendo a Sra. Bradley um daqueles chocolates chamado Risadinha. E, se fosse uma risadinha extremamente grosseira, você ficava devendo uma barra tamanho família.
Sobre o balcão, ao lado do senhor walkman e do milk-shake de chocolate maltado que pedi em homenagem à minha mãe, estão às próximas três fitas.
E todo mundo pagava a dívida sem discutir. Este era o tipo de respeito que todo mundo tinha pela Sra. Bradley. Não a acusavam de implicar com ninguém, porque ela nunca fazia isso. Se dissesse que você estava dando risadinha, você estava. E sabia disso. No dia seguinte. Teria um chocolate esperando por ela em cima da mesa.
E se não tivesse? Não sei. Sempre tinha.
Junto as duas próximas fitas, rotuladas com o número nove e dez, onze e doze, pintados com esmalte de uma azul, e as escondo no bolso interno da jaqueta.
A sra. Bradley falava que comunicação entre jovens era a matéria favorita entre as que ela lecionava – ou moderava com ela dizia. A cada dia, nos recebíamos um texto breve para ler, cheios de exemplos tirados da vida real. Depois, debatíamos sobre ele.
A última fita, a sétima, tem um treze de um lado e nada no verso. Enfio essa fita no bolso traseiro do jeans.
Bullying. Drogas. Autoimagem. Relacionamentos. Todo assunto era valido na comunicação entre jovens. Algo que, obviamente, incomodava muitos dos outros professores. Era uma perda de tempo, diziam. Eles queriam nos ensinar fatos nus e crus.
Faróis iluminaram a janela do Rosie’s de uma ponta a outra e eu fecho ligeiramente os olhos enquanto eles passam.
Eles queriam nos ensinar o significado de X em relação a Y em vez de nos ensinar melhor a nós ajudar a entender melhor a nós mesmo e aos outros. Queriam nos ensinar quando a Carta Magna foi assinada – não importa o que seja isso –, em vez de discutir controle de natalidade.
Nós temos aula de educação sexual, mais é uma piada.
O que significava que, todo ano, nas reuniões de orçamento da escola, a comunicação entre jovens sofria ameaça de corte. E, todo ano, a Sra. Bradley e os outros professores levavam alguns alunos para dar exemplo a diretoria dos benefícios que a matéria nos trazia.
Legal, eu poderia continuar defendendo a Sra. Bradley para sempre. Mas alguma coisa aconteceu naquela classe, não foi? Senão, porque vocês estariam me escutando falar sobre ela?
No ano que vem, após meu pequeno incidente, espero que a comunicação entre jovens continue. Eu sei, eu sei. Vocês pensaram que eu ia dizer algo diferente, não foi?
Pensaram que, se eu dissesse que essa matéria teve um papel na minha decisão, ela deveria ser cortada. Mas ela não deve, não.
Ninguém no meu colégio deve saber o que eu vou contar. E não foi a matéria em si que teve um papel maior nisso. Mesmo que eu nunca tivesse feito comunicação entre jovens, o resultado final poderia muito bem ter sido o mesmo.
Ou não.
Acho que essa é a questão central. Ninguém sabe ao certo impacto tem na vida dos outros. Muitas vezes não tem noção. Mas forçamos a barra do mesmo jeito.
Minha mãe estava certa. O Milk-shake é incrível. Uma combinação perfeita de sorvete e chocolate maltado.
E eu sou um idiota por estar sentado aqui, me deliciando com ele.
No fundo da sala da Sra. Bradley ficava uma estante de arame. Do tipo giratória. Do tipo que vende romance em edição de bolso na livraria. Mas essa estante nunca teve livros. No começo de cada ano, o aluno recebia um saquinho de papel pardo para decora com giz de cera, adesivos e selos. Abríamos o saquinho e os pregávamos na estante com uns pedacinhos de fita adesiva.
A sra. Bradley sabia que as pessoas tinham dificuldade para dizer coisas simpáticas umas paras outras. Daí, ela inventou um jeito de expormos anonimamente o que sentíamos.
Você admira a maneira como fulano fala tão abertamente sobre sua própria família? Coloque um bilhete no saquinho dele dizendo isso.
Você entende a preocupação que fulana tem de não passar de ano em história? Deixe um bilhete para ela. Diga que estará pensando nela quando estudar para a próxima prova.
Você gostou da atuação dele na peça encenada no colégio? Você gostou do novo corte do cabelo dela?
Ela cortou o cabelo. Na foto de Monet’s, o cabelo de Hannah estava comprido. É assim que sempre a vejo em minha mente. Até mesmo agora. Mas não era assim que ela estava no final.
Se você conseguir, diga tudo na cara deles. Mas se não conseguir, deixe um bilhetinho e eles receberão seu recado da mesma maneira. Até onde eu sei, nunca deixaram um bilhetinho maldoso ou sarcástico no saquinho de alguém. Nós respeitávamos demais a Sra. Bradley para fazer isso.
Então, Zach Dempsey, qual a sua justificativa?

▌▌

O quê? O que aconteceu?
Olho para cima e vejo Tony parado ao meu lado, com o dedo na teclapause.
— É o walkman?
Não digo nada, porque não consigo entender sua expressão.
Não é de raiva, embora eu tenha roubado seu walkman.
Confusão? Talvez. Mas, se for, tem algo mais que isso. É o mesmo olhar que me lançou quando eu estava ajudando com o carro. Quando ele estava me encarando em vez de auxiliar seu pai com a lanterna.
Preocupação.
— E aí Tony?
Tiro o fone dos ouvidos. O walkman. Certo, ele perguntou sobre o walkman.
— É sim. Ele estava no seu carro. Eu o vi quando estava ajudando. Hoje mesmo, algumas horas atrás. Acho que perguntei se eu poderia pegar emprestado.
Que grande idiota eu sou.
Ele se apoia sobre o balcão e senta ao meu lado.
— Sinto muito, Clay — ele fala. Olha dentro dos meus olhos. Será que consegue percebe que sou um mentiroso horroroso?
— Às vezes fico tão sem paciência ao lado do meu pai. Tenho certeza que você perguntou e eu simplesmente esqueci.
Seu olhar desce até os fones amarelos em volta do meu pescoço e daí até o toca fitas em cima do balcão. Rezo pra ele não perguntar o que eu estou escutando.
Somando Tony e a minha mãe, eu já menti um bocado hoje.
Se ele fizer a pergunta, precisarei mentir de novo.
— É só você devolver quando tiver terminado — ele disse.
Levanta-se e coloca uma mão no meu ombro.
— Fique com ele o quanto precisar.
— Obrigado.
— Não precisa ter presa.
Ele pega um cardápio entre dois porta-guardanapos vai até uma mesa vazia, atrás de mim, e senta.


Não se preocupe, Zach. Você nunca deixou nada maldoso no meu saquinho. Eu sei disso. O que você fez foi pior.
Pelo que sei, Zach é gente boa. Tímido demais para fala mal dos outros.
E, assim como eu, ele sempre teve uma queda por Hannah Baker.
Mas, primeiro, vamos voltar algumas semanas, vamos voltar... Até ao Rosie‘s.
Meu estomago se contrai com força, como se tivesse completando um último abdominal. Fecho os olhos e me concentro em me trazer de volta ao normal. Mas não estou normal há horas. Até minhas pálpebras estão quentes. Como se meu corpo inteiro estivesse lutando contra uma doença.
Fiquei sentada ali, na mesa onde Marcus mi deixou encarando a taça de Milk-shake vazia. O lado do sofá que ele estava provavelmente continuava quente, porque ele saíra apenas um minutinho antes. Quando o Zach se aproximou. E sentou.
Abro os olhos diante da fileira de bancos vazios do lado de cá do balcão. Em um dos bancos, talvez neste momento, Hannah se sentou quando entrou aqui. Sozinha. Mas, aí, Marcos chegou e a levou para uma mesa.
Meu olhar segue o balcão até as maquinas de fliperama no fundo da lanchonete, depois se volta para mesa deles, vazia.
Eu fingi não notá-lo. Não que tivesse algo contra ele, mas porque meu coração e minha confiança estavam entrando em choque. E esse choque criou um vácuo no meu peito. Como se todos os nervos do meu corpo tivessem definhando, se soltando dos dedos dos pés e das mãos. Se soltando e desaparecendo.
Meus olhos ardem. Estendo a mão para frente, deslizando-a pela taça embaçada do Milk-shake. Gotículas geladas grudam na minha pele, e eu passo os dedos molhados nas pálpebras.
Permaneci sentada. Pensando. E quanto mais eu pensava, interligando os acontecimentos da minha vida mais meu coração ficava aterrorizado. Zach foi um doce. Me deixou ignorá-lo até a situação se tornar quase cômica. Eu sabia que ele estava ali, é claro. Ele estava me encarando. Até que de maneira melodramática, limpou a garganta.
Coloquei a mão sobre a mesa e toquei a base da taça. Esse era o único sinal que ele teria de que eu estava escutando.
Puxo minha taça mais para perto e reviro a colher dentro dela, em círculos lentos, amolecendo o chocolate que sobrou no fundo.
Ele perguntou se eu estava bem e me forcei a fazer um sinal de positivo com a cabeça. Mas meus olhos continuavam fixos na taça – olhando através dela e para a colher. E eu continuava pensando sem parar: será que é assim que a gente se sente quando enlouquece?
“Sinto muito” ele disse. “Pelo que acabou de acontecer, seja lá o que for.
Senti a cabeça concordar, como se tivesse presa a molas, mas não tive força para agradecer com palavras.
Ele se ofereceu para me pagar mais um Milk-shake, eu não respondi nada. Será que eu havia perdido a capacidade de falar? Ou simplesmente não queira conversa? Não sei. Uma parte de mim achou que ele estava me paquerando... pronto para se aproveita do fato de que eu agora estava sozinha para me convida para sair. Não que eu tenha acreditado totalmente nisso, mas porque deveria acredita nele?
A garçonete largou minha conta e levou a taça embora. Não demorou para que Zach, sem conseguir nada comigo, deixasse alguns dólares em cima da mesa e voltasse para perto dos amigos.
Continuo mexendo meu Milk-shake. Não sobrou quase nada, mas não quero que levem a taça embora. Ela me dá um motivo para ficar sentado aqui. Para permanece aqui.
Meus olhos começaram a lagrimejar, mas não consegui desgrudá-los do pequeno círculo molhado onde estava a taça.
Se eu tivesse tentado emitir uma única palavra, teria colocado tudo a perder.
Ou será que eu já tinha perdido tudo?
Continuo mexendo.
Foi naquela mesa que os piores pensamentos do mundo entraram, pela primeira vez, na minha cabeça. Foi ali que eu comecei a pensar em... a pensar em... na palavra que ainda não consigo dizer.
Sei que você tentou me ajudar a sair daquele estado, Zach. Mas todos nós sabemos que não é por esse motivo que você está nesta fita. Por isso, tenho uma pergunta a fazer, antes de continuarmos. Quando vocês tentam ajudar alguém e descobrem que está pessoa está sem condição de ser ajudada, porque, em algum momento, acabaram jogando isso na sua cara?
Porque nos últimos dias, ou semanas, ou seja lá quanto tempo demorou para você receber essas fitas, Zack, você provavelmente pensou que jamais ninguém ficaria sabendo.
Abaixo a cabeça colocando-a entre as mãos. Quantos segredos pode haver em um colégio?
Você provavelmente ficou enjoado quando soube o que eu fiz.
Mas, conforme o tempo foi passando, foi se sentindo melhor. Porque, conforme o tempo foi passando, parecia mais provável que seu segredo morresse junto comigo. Ninguém sabia.
Ninguém jamais descobriria.
Mas agora nós vamos saber. E começo, também, a me sentir um pouco enjoado.
Me deixe saber, Zack: você acha que eu rejeitei você no Rosie‘s? Você nunca chegou a me convidar para sair, então, oficialmente, eu não poderia ter rejeitado você, certo? Então o que aconteceu? Ficou envergonhado?
Vou adivinhar. Você falou pros seus amigos que ia me passar uma cantada... e eu mal respondi.
Ou foi um desafio? Eles desafiaram você a me convidar para sair?
As pessoas faziam isso. Faz pouco tempo em que me desafiaram convidar Hannah para sair. Um cara que trabalhava coma gente no Crestmont. Sabia que eu gostava dela e não tinha coragem de convidá-la. Também sabia que, nos últimos meses, Hannah quase não falava comigo, tornando aquilo um duplo desafio.
Quando sai daquele estado, ouvi que você e seus amigos estavam falando. Eles estavam enchendo seu saco por você não ter conseguido marcar um encontro que estava no papo.
Eu vou dar o devido credito a você, Zach. Você deveria ter voltado para os seus amigos e dito: “A Hannah é doida. Olhem só para ela. De olhos vidrados na Terra do Nunca.”
Em vez disso ficou aquentando as provocações.
Mas você deve ser uma daquelas pessoas que o sangue ferve escondido, que vão ficar cada vez com mais raiva... levando a coisa para o lado pessoal, quanto mais pensava na maneira como deixei você sem resposta. E você resolveu se vingar de mim de maneira mais infantil.
Você roubou os bilhetes de incentivo do meu saquinho de papel.
Que coisa mais patética.
Então como foi que eu percebi? É simples na verdade. Todo mundo recebia bilhetes. Todo mundo! Pelos motivos mais insignificantes. Até quando alguém cortava o cabelo, a pessoa recebia um monte de bilhetes. E tinha gente naquela classe que eu considerada como amigo, gente que teria colocado algo no meu saquinho depois que eu tosei quase todo meu cabelo.
Quando ela passou pela primeira vez por mim no corredor, com o cabelo tão curto, fiquei de queixo caído. Ela desviou o olhar. Por uma questão de hábito, ela penteava o cabelo afastando-o do rosto, para trás da orelha. Mas ele estava curto demais ficava caindo à frente.
Por falar nisso, eu cortei o cabelo no mesmo dia em que Marcus Cooley e eu nos encontramos no Rosie‘s.
Nossa! Que estranho. Todos aqueles sinais de alerta que chamavam nossa atenção são verdadeiros. Eu saí direto do Rosie‘s para cortar o cabelo. Eu precisava mudar alguma coisa, exatamente como dizem, por isso mudei minha aparência. A única coisa que eu ainda podia controlar.
Incrível.
Ela faz uma pausa. Silencio. Apenas a estática, quase inaudível, nos fones de ouvido.
Tenho certeza que o colégio recebeu visitas de psicólogos carregados de folhetos, ensinando o que se deve em alunos que talvez estejam pensando em...
Outra pausa.
Não. Como antes, ainda consigo dizer isso.
Suicídio. Que palavra nojenta.
No dia seguinte, quando encontrei meu saquinho vazio, percebi que estava acontecendo alguma coisa. Pelo menos imaginei que estava acontecendo alguma coisa. Nos primeiros meses de aula, eu tinha recebido cerca de quatro a cinco bilhetes. Mas de repente, depois daquela mudança tão reveladora... Nada.
Depois de cortar o cabelo, esperei uma semana.
Duas semanas.
Três semanas.
Nada.
Empurro a taça de milk-shake para o outro lado do balcão e olho para o homem na caixa registradora.
– Você pode tirar isso daqui?
Estava na hora de eu descobri o que estava rolando. Por isso escrevi um bilhete para mim mesma.
Ele lançava um olhar duro em minha direção contando o troco, e a garota ao lado do caixa também olha para mim. Ela toca os dedos. Os fones. Estou falando alto demais.
– Desculpa. – Sussurro. Ou talvez as palavras nem tenha saído.
“Hannah, dizia o bilhete, “gostei do novo corte de cabelo. Me desculpe por não ter dito antes.” Acrescentei um smiley roxo.
Para evitar a tremenda vergonha de ser flagrada deixando um bilhete para mim mesma, escrevi também para o saquinho ao lado do meu. Depois da aula, fui até a estante e fiz todo um teatro para colocar o bilhete no outro saquinho. Ai, passei casualmente a mão dentro do meu saquinho, fingindo que estava conferindo se tinha algum bilhete. E digo ―fingindo― porque sabia que ele estava vazio.
E no dia seguinte? Nada no meu saquinho. O bilhete havia sumido.
Talvez isso não parecesse grande coisa para você Zach. Mas espero que você compreenda agora. Meu mundo estava ruindo. Eu precisava daqueles bilhetes. Precisava do mínimo de esperança que aqueles bilhetes poderiam ter me dado.
E você? Você me tirou essa esperança. Você decidiu que eu não a merecia.
Quanto mais escuto as fitas, mais tenho a impressão de conhecê-la. Não a Hannah dos últimos anos, mas as dos últimos meses. Essa é a Hannah que eu estou começando a entender.
A Hannah do final.
A última vez que me senti tão próximo assim de uma pessoa, é uma pessoa morrendo aos poucos, foi na noite da festa. A noite em que dois carros bateram as escuras em um cruzamento.
Naquele momento, assim como agora, eu não sabia que as pessoas estavam morrendo. Naquele momento, assim como agora, avia um monte de gente em volta. Mas o que poderiam ter feito? Aquelas pessoas paradas em volta do carro, tentando acalmar o motorista, esperando a ambulância chegar, será que poderiam ter feito alguma coisa?
As pessoas que passavam por Hannah nos corredores, as que sentavam ao seu lado na aula, o que poderiam ter feito?
Talvez naquele momento, assim como agora, já fosse tarde demais.
Me diz, Zach, quantos bilhetes você me tirou? Quantos bilhetes eu nunca pude ler? E você os leu? Espero que sim. Pelos menos uma pessoa deve saber o que os outros realmente pensam de mim.
Dou uma olhada por cima do ombro. Tony continua ali, mastigando um punhado de batatas fritas e jogando ketchup em cima do hambúrguer.
Reconheço que durante os debates das aulas eu nunca me abria muito. Mas, nas vezes em que me abri, será que alguém me agradeceu por isso, deixando um bilhete no meu saquinho?
Teria sido legal saber. Na verdade, teria me incentivado a me mostrar mais.
Não é justo. Se o Zach tivesse alguma noção do que Hannah estava passando, tenho certeza de que não roubaria os bilhetes dela.
No dia em que meu bilhete escrito por mim sumiu, fiquei parada do lado de fora da sala, conversando com alguém que nunca tinha falado antes. Eu olhava por cima do ombro da pessoa a cada dois segundos, observando os alunos procurarem bilhetes nos seus saquinhos.
Aquilo realmente parecia muito divertido, Zach.
E foi aí que eu peguei você. Discretamente, você empurrou a abertura do meu saquinho, só o suficiente para dar uma espiadinha.
Nada.
Então, você veio saindo, sem conferir seu próprio saquinho, o que eu achei muito interessante.
O homem atrás do balcão recolheu a taça e, com um trapo manchado de chocolate, limpar o balcão.
É claro que isso não prova nada. Talvez você apenas gostasse de ver quem recebia bilhetes e quem não recebia... com interesse particular na minha pessoa.
Por isso, no dia seguinte, entrei na sala de aula da Sra. Bradley durante o almoço. Tirei meu saquinho de papel da estante e o grudei de volta com um pedacinho de durex. Dentro dele, coloquei um bilhetinho dobrado ao meio.
Depois da aula, esperei novamente do lado de fora, observando. Dessa vez não fiquei conversando com ninguém. Fiquei só observando.
Armadilha perfeita.
Você tocou a abertura do saquinho, viu o bilhete e enfiou a mão.
O saquinho caiu e seu rosto ficou vermelho como um pimentão.
Mesmo assim você abaixou e pegou o bilhete. E a minha reação? Descrença. Eu vi. Estava esperando que acontecesse.
Mesmo assim, não consegui acreditar.
Embora meu plano original fosse confrontar você bem ali, me afastei para o lado, deixando a saída livre.
Todo afobado, você virou no corredor... e lá estávamos os dois.
Cara a cara. Meus olhos ardiam enquanto eu encarava seu rosto. Desviei o olha e abaixei a cabeça. E você disparou.
Ela não queria que ele explicasse. Não havia explicação. Ela tinha visto tudo com os próprios olhos.
Quando você estava na metade do corredor, ainda caminhando depressa, vi você olhar para baixo, como se estivesse lendo alguma coisa. O meu bilhete? Sim.
Você virou apenas um instante. E, naquele momento, fiquei assustada. Será que você viria me pedir desculpa? Será que viria gritar comigo?
A resposta? Nenhuma das anteriores. Você simplesmente continuou andando, cada vez mais perto da saída, mais perto de escapar.
E, enquanto eu permanecia parada ali no corredor – sozinha – , tentando entender o que tinha acabado de acontecer, e por qual motivo, percebi a verdade: eu não era digna de uma explicação... nem mesmo de uma reação. Não para você Zach.
Ela fez uma pausa.
Para o resto de vocês que estão escutando, o bilhete era dirigido ao Zach. Talvez ele entenda agora como uma instrução para essas fitas. Porque, no bilhete, eu reconhecia que chegava a um ponto em que qualquer palavra amiga que recebesse seria de grande utilidade. Palavras amigas... que ele roubou.
Mordo o polegar, acalmando a ansiedade de olhar, por cima do ombro, para Tony. Será que ele está se perguntando o que eu estou escutando? Será que se importa?
Mas eu não conseguia mais suportar aquilo. Como vocês veem, Zach não é o único que esconde o sangue quente.
Gritei: “Por quê?
No corredor ainda havia alguns alunos. Todos olharam, mas continuaram a andar. Só um parou. E ficou parado, me encarando, enfiando meu bilhete no bolso traseiro.
Gritei as palavras várias vezes. Com lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
“Por quê? Por que, Zach?
Eu ouvi fala disso. Hannah perdendo a cabeça, sem nenhum motivo aparente, passando vergonha na frente de todo mundo.
Eles estavam errados. Havia um motivo.
Então, agora, vamos levar a coisa para o lado pessoal. Seguindo a tal orientação de se abrir – se abrir totalmente –, vou contar o seguinte: meus pais me amam. Eu sei que me amam. Mais as coisas não estavam fáceis. Há mais ou menos um ano. Desde que aquele negócio que vocês sabem o que é abriu na periferia da cidade.
Eu me lembro disso. Os pais da Hannah apareciam no noticiário, todas as noites, alertando que, se aquele shopping Center enorme fosse construído, levaria as lojas do centro da cidade a falência.
Quando isso aconteceu, meus pais ficaram distantes. De repente, eles eram obrigados a resolver um monte de coisas. Muita pressão para dar conta dos problemas. Eles conversavam comigo, mas não como antes.
Quando cortei o cabelo, minha mãe nem notou.
E até onde sei – obrigada, Zach. – ninguém no colégio notou também.
Eu notei.
A Sra. Bradley também tinha um saquinho de papel. Ficava pendurado com os nossos na estante giratória. Nós podíamos usá-los – e ela nos incentivou a fazer isso – para deixar bilhetes sobre o jeito de ela dar aula. Com críticas ou não. Ela também queria que sugeríssemos assuntos para futuros debates.
Fiz exatamente isso. Escrevi um bilhete para a Sra., Bradley dizendo o seguinte: “Suicídio. Tenho pensado nisso. Não muito a sério, mas tenho pensado nisso.
Esse foi o bilhete. Palavra por palavra. E eu sei que foi assim, palavra por palavra, porque reescrevi dezenas de vezes antes de entregá-lo. Eu escrevia, jogava fora, escrevia, amassava o papel, jogava fora.
Mas porque estaria escrevendo aquilo? Me fazia essa pergunta todas as vezes que gravava as palavras em uma nova folha.
Por que eu estava escrevendo aquele bilhete? Era mentira. Eu não estava pensando naquilo. Não pra valer. Não em detalhes.
O pensamento entrava na minha cabeça e eu mandava ele embora. Mandei ele embora um monte de vezes.
Era um assunto nunca discutido em classe. Mas eu tinha certeza que mais pessoas, além de mim, haviam pensado nisso, certo? Então por que não debate o tema em grupo?
Ou, bem no fundo, talvez houvesse algo além disso. Talvez eu quisesse que alguém deduzisse quem havia escrito o bilhete secretamente viesse me socorrer.
Talvez. Eu não sei. Mas tomei cuidado para não me entregar.
O corte de cabelo. Desviar o olhar nos corredores. Você tomou cuidado, mais mesmo assim havia sinais. Sinais pequenos. Estavam lá.
E, aí, como se nada tivesse acontecido você voltou ao normal.
Exceto pelo fato de ter me entregue o bilhete diante de você, Zach. Você sabia que era eu quem havia escrito o bilhete que estava no saquinho da Sra. Bradley. Você tinha que saber. Ela leu no dia seguinte ao flagra que dei em você. No dia seguinte à minha crise no corredor.
Alguns dias antes de compra os comprimidos, Hannah voltou a ser como antes. Dizia “Oi” para todo mundo nos corredores. Olhava dentro dos olhos de cada um. Parecia algo radical, porque fazia meses que ela não agia daquela maneira. Como a verdadeira Hannah.
Mas você não fez nada, Zach. Nem depois que a Sra. Bradley trouxe o assunto à tona, você não fez nada para tentar se comunicar comigo.
Parecia algo radical porque, de fato, era.
Então, o que será que eu queria? Queria, principalmente, escutar o que todos tinham a dizer. Seus pensamentos. Seus sentimentos.
E, cara, eles disseram muita coisa.
Uma pessoa falou que seria difícil ajudar o fulano sem saber por que ele queria se matar.
E eu me segurei para não dizer: “Ou ela. Pode ser uma garota.”
Ai, os outros começaram a dar suas opiniões.
“Se essa pessoa se sente sozinha, ela pode almoçar com a gente.
“Se estiver com notas ruins, podemos ajudá-la a estudar.”
“Se tiver com problemas em casa, talvez pudéssemos... sei lá... incentivá-la a procurar um psicólogo ou algo assim”.
Mas tudo o que eles disseram – tudo! – veio com certo tom de irritação. Até que uma das garotas, cujo nome não interessa, disse o que todo mundo estava pensando.
“Parece que essa pessoa que escreveu esse bilhete só quer atenção. Se fosse sério ela teria dito quem é.”
Meu Deus, Não tinha como Hannah se abrir com a gente.
Eu não consegui acreditar.
Antes disso a sra. Bradley tinha recebido, no saquinho, bilhetes sugerindo discussões em grupo em grupo sobre aborto, violência familiar, traição – enganar o namorado, a namorada, ou o professor, nas provas e trabalho. Ninguém insistiu em querer saber quem tinha escrito esses temas. Mas, por alguma razão, se recusaram a debater sobre suicídio sem ter detalhes específicos.
Durante mais ou menos dez minutos a sra. Bradley disparou uma serie de estatísticas – estatísticas locais – que causaram surpresa em todo mundo. Porque somos jovens, segundo ela, e a não ser que o suicídio ocorresse em um local público, com testemunha. Provavelmente não seria noticiado. Os pais não querem que os outros saibam que seu filho, o filho que eles criaram, acabou com a própria vida. Portanto, as pessoas muitas vezes são levadas a acreditar que a morte foi um acidente. O problema é que não ficamos sabendo o que realmente sentem as pessoas com as quais convivemos.
Depois desse dia, não houve mais nenhuma discussão aprofundada em nossa classe.
Será que estavam apenas intrometidos ou realmente pensavam que querer saber os detalhes específicos era a melhor maneira de ajudar? Não sei ao certo. Um pouco de cada coisa, talvez.
Na aula do Sr. Porter eu a observava bastante. Se uma discussão sobre suicídio tivesse vindo à tona, talvez nossos olhares se cruzassem e eu enxergasse isso nela.
Na verdade, não sei o que eles poderiam ter feito para me fazer pender para um lado ou para o outro. Talvez eu estivesse apenas sendo egocêntrica. Talvez quisesse apenas chamar atenção. Talvez quisesse apenas ouvir os outros discutirem sobre mim e sobre meus problemas.
Pelo que Hannah me contou na festa, ela gostaria que eu enxergasse isso. Ela ia olhar diretamente para mim imaginando que eu entendesse.
Ou talvez quisesse que alguém apontasse o dedo para mim e dissesse: “Hannah! Você está pensando em se matar? Por favor! Não faça isso, Hannah! Por favor!”
Mas, lá no fundo, a única pessoa dizendo isso era eu. Lá no fundo, essas eram as minhas palavras.
No final da aula, a Sra. Bradley distribui um folheto: Sinais de alerta em um indivíduo suicida”. Adivinhem o que estava entre os cincos sinais principais?
Mudança de aparência repentina.
Puxei as pontas do meu cabelo recém-tosados.
Ops. Quem esperaria que eu fosse tão previsível assim?


Esfregando o queixo no ombro, eu enxergo Tony, que ainda está em sua mesa. O seu hambúrguer já era assim como a maioria de suas batatas fritas. Ele permanece sentado ali sem ter a menor ideia do que eu estou passando.

Abro o walkman, tiro a fita de número quatro e a viro do outro lado.

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