Fita 2: Lado B

Em homenagem a Hannah, eu deveria pedir um chocolate quente. No Monet’s, ele é servido com pequenos marshmallows boiando. O único lugar que conheço que faz isso.
Mas quando a garota pergunta, eu digo "café", porque sou muquirana. O chocolate quente custa um dólar a mais.
Ela empurra uma caneca vazia na minha direção e aponta para o balcão self-service. Eu coloco creme de leite suficiente para cobrir o fundo da caneca. O resto eu encho com um blend chamado "Peito Cabeludo", porque me parece algo altamente cafeinado que talvez me faça ficar acordado até tarde para terminar de ouvir as fitas.
Acho que preciso acabar de ouvi-las, e acabar hoje à noite.
Mas será que eu deveria fazer isso? Em uma noite? Ou deveria achar a minha história, escutar e, depois, só ouvir o suficiente da seguinte para ver a quem devo passar o pacote?
— O que você está escutando?
É a garota do balcão. Está ao meu lado, inclinando os recipientes de aço inoxidável que contêm creme de leite, leite desnatado de soja. Está conferindo se estão cheios. Duas riscas negras, partes de uma tatuagem, se estendem pelo pescoço e desaparecem no cabelo curto e repicado dela.
Olho para baixo, na direção dos fones amarelos pendurados em torno do meu pescoço.
— Só algumas fitas.
— Fitas cassete?
Ela segura o recipiente de leite de soja junto da barriga.
— Interessante. Será que são de alguém que conheço?
Faço um movimento negativo com a cabeça e jogo três cubos de açúcar dentro do café. Ela segura o recipiente com um só braço, como se fosse um bebê, e estende a mão.
— Nós frequentamos a mesma escola, dois anos atrás. Você é o Clay, certo?
Coloco a caneca no balcão e encaixo minha mão dentro da mão dela. A palma está quente e macia.
— Nós fizemos uma matéria juntos, mas não conversamos muito — ela explica. Ela parece mesmo um pouco familiar. Talvez seu cabelo esteja diferente.
— Você não me reconheceria. Eu mudei muito depois do colégio — ela revira os olhos fortemente maquiados. — Ainda bem.
Coloco uma pazinha de madeira no meu café e mexo.
— Qual foi a matéria que fizemos?
— Marcenaria.
Continuo não me lembrando dela.
— A única coisa que ganhei com essa matéria foram farpas de madeira nos dedos — ela ri. — Ah, e um banco de piano. Ainda não tenho um piano, mas, pelo menos, o banco está pronto. Você lembra o que fez?
Continuo a mexer o café.
— Uma prateleira para temperos.
O creme de leite se dilui e o café fica marrom claro, com um pouco de pó moído escuro subindo à superfície.
— Sempre achei você o cara mais legal de todos. Na escola, todo mundo achava isso. Meio quieto, mas tudo bem. Naquela época, pessoas diziam que eu falava demais.
Um freguês limpa a garganta perto do balcão. Nós dois olhamos, mas ele não levanta os olhos do cardápio de bebidas. Ela se vira para mim e apertamos as mãos novamente
— Bom, talvez eu veja você por aí, quando tiver mais para conversar.
Ela volta para trás do balcão.
É isso que eu sou. Clay, o cara legal.
Será que ela ainda diria isso se escutasse estas fitas?
Vou para o fundo do Monet’s, em direção à porta fechada que dá para o pátio. Pelo caminho, mesas cheias de pessoas com as pernas estendidas e cadeiras esparramadas formam uma pista de obstáculos, me convidando a derramar o café.
Uma gota quente acaba pingando no meu dedo. Vejo que escorre pela mão e cai no chão. Esfrego a ponta do sapato na mancha, até ela desaparecer. E me recordo, horas antes neste mesmo dia, de ter visto um pedaço de papel cair do lado de fora de uma loja de sapatos. Não sei ao certo por que andei por ali tantas vezes. Talvez eu estivesse procurando alguma conexão com Hannah, alguma conexão fora da escola, e essa tenha sido a única que consegui pensar. Em busca de respostas para perguntas que eu não sabia como fazer.
Sobre a vida dela. Sobre tudo.
Respiro fundo.
Conforme as histórias vão passando, uma atrás da outra, eu me sinto aliviado quando meu nome não é citado. Em seguida, vem o medo daquilo que ela não disse ainda, do que ela vai dizer quando chegar a minha vez.
Porque a minha vez está chegando. Eu sei. E quero que isso acabe.
O que eu fiz para você, Hannah?


Enquanto aguardo as primeiras palavras dela, olho fixamente para o lado de fora. Lá está mais escuro do que aqui dentro. Quando retraio o olhar e ajusto o foco, enxergo meu próprio reflexo no vidro.
E desvio a visão.
Encaro o walkman na mesa. Continua sem nenhum som, embora o play esteja pressionado. Talvez a fita não tenha encaixado direito no lugar.
Por isso, aperto o stop.


Depois, o play novamente.


Nada. Rodo o polegar sobre o botão do volume. A estática nos fones do ouvido fica mais alta, por isso volto a abaixar. E espero.
Shh!... Se você estiver conversando na biblioteca.
A voz dela, num sussurro.
Shh!... No cinema ou na igreja.
Escuto mais de perto.
Às vezes não tem ninguém em volta para mandar você ficar quieto...
Às vezes você precisa ficar em silêncio quando está completamente sozinho. Como eu, agora, neste instante. Shh!
Nas mesas lotadas que ocupam o resto do salão, as pessoas conversam. Mas as únicas palavras que compreendo são as de Hannah. As outras tornaram-se um ruído de fundo abafado, ocasionalmente atingindo um pico com alguma gargalhada aguda.
Por exemplo, é melhor você ficar quieto — não dar nem um pio — se você for um voyeur. Imaginou se te escutam?
Solto um suspiro. Não sou eu. Ainda não sou eu.
E se ela... e se eu... descobrisse?
Adivinha só, Tyler Down? Eu descobri.
Encosto na cadeira e fecho os olhos.
Sinto pena de você, Tyler. Sinto mesmo. Todas as outras pessoas nessas fitas até agora, devem se sentir um pouco aliviadas. Elas são apresentadas como mentirosas, ou babacas, ou pessoas inseguras que atacam os outros.
Mas a sua história, Tyler... ela é meio perturbadora.
Bebo meu primeiro gole de café.
Um voyeur? O Tyler? Eu nunca soube disso.
E me sinto um pouco perturbada contando isso, também. Por quê? Porque estou tentando me colocar no seu lugar, Tyler. Tentando entender a excitação de ficar olhando pela janela do quarto de uma pessoa. Observado uma pessoa que não sabe que está sendo observada. Tentando flagrar essa pessoa no ato de... Qual era o ato que você estava tentando me flagrar, Tyler? E você ficou decepcionado? Ou teve uma surpresa agradável?
Legal, vamos levantar a mão, por favor. Quem sabe onde estou?
Coloco meu café na mesa, me inclino para a frente e tento imaginá-la gravando isto.
Onde ela está?
Quem sabe onde estou parada agora?
Eu saco o que ela quer dizer e balanço a cabeça, sentindo-me constrangido por ele.
Se você disse "Do lado de fora da janela do Tyler", acertou. E ela fica no A-4, no mapa de vocês. O Tyler não está em casa agora... mas os pais dele estão. E espero de verdade que eles não venham aqui fora. Felizmente tem um arbusto alto e largo bem embaixo da janela dele, que é parecida com a minha, então me sinto bem segura.
Como você está se sentindo, Tyler?
Não consigo imaginar como foi para ele colocar estas fitas no correio. Sabendo que estava enviando seu segredo para o mundo.
Você está em uma reunião da equipe de produção do álbum do ano a escola. Isso inclui muita pizza e fofoca. Por isso, sei que você só vai chegar em casa quando estiver escuro, do jeito que você gosta. Algo que, como voyeuse amadora, também aprecio muito.
Por isso, obrigada, Tyler. Obrigada por facilitar as coisas.
Será que quando Tyler escutou isso estava aqui no Monet's, tentando parecer calmo enquanto suava em bicas? Ou estaria deitado na cama, com os olhos estatelados, grudados na janela?
Vamos dar uma espiada aí dentro, antes de você chegar em casa, que tal? A luz do corredor está acesa, por isso consigo enxergar tudo muito bem. E vejo, sim, vejo exatamente o que eu esperava — um monte de equipamento fotográfico.
Você tem uma coleção e tanto aqui, Tyler. Uma lente para cada ocasião.
Inclusive de visão noturna. O Tyler ganhou um concurso estadual com essa lente. Primeiro lugar na categoria humor.
Um velho passeava com um cachorro, à noite. O cachorro parou para fazer xixi numa árvore, e o Tyler bateu a foto. A lente de visão noturna fez parecer que tinha um raio laser verde saindo do cachorro.
Eu sei. Eu sei. Até posso ouvir. “Essas são para o álbum do ano, Hannah. Eu sou o fotógrafo da vida estudantil.” Eu tenho certeza que foi por isso que seus pais não se importaram de gastar uma grana alta com elas. Mas essa é a única maneira que você usa esse material? Fotos espontâneas do corpo estudantil? Ah, é. Fotos espontâneas do corpo estudantil.
Antes de vir até aqui, tomei a iniciativa de conferir "espontâneo" no dicionário. É uma daquelas palavras com muitas definições, mas tem uma que é a mais apropriada. E aqui está ela, memorizada para seu prazer: "sem artificialismo, elementos ensaiados ou estudados; natural, sincero, verdadeiro".
Então conta pra mim, Tyler, naquelas noites que você ficou do lado de fora da minha janela, fui espontânea o suficiente para você? Você me flagrou ao natural, sem pose... Espera aí. Vocês ouviram isso?
Sento rígido e apoio os cotovelos na mesa.
Um carro subindo a rua.
Coloco as mãos em concha sobre os dois ouvidos.
Será que é você, Tyler? Certamente está se aproximando. E aí vêm os faróis.
Posso ouvi-lo, logo abaixo da voz da Hannah. O motor.
Meu coração tem certeza que é você. Meu Deus, ele está batendo forte.
O carro está fazendo a curva, para subir pela entrada da garagem.
Atrás da voz dela, pneus rodam sobre o cimento. O motor não para de fazer barulho.
É você, Tyler. É você. Você não desligou o motor, então vou continuar falando. Ah, sim, é excitante. Dá para sentir qual é o barato.
Deve ter sido aterrorizante para ele ouvir isso. E deve ser infernal saber que ele não é o único a ter conhecimento do que aconteceu.
Certo, ouvintes, prontos? A porta do carro...e... Shh!
Uma pausa longa. A respiração dela está suave. Controlada. Uma porta bate com força. Chaves. Passos. Outra porta é destrancada.
Legal, Tyler. Aqui vai a narração, lance por lance. Você dentro de casa, com a porta fechada. Ou você está dizendo oi para papai e mamãe, contando que tudo correu super bem e que esse vai ser o melhor álbum escolar de todos os tempos, ou eles não compraram pizza suficiente para a reunião e você está indo direto para a cozinha.
Enquanto esperamos, vou recuar no tempo e contar como tudo começou. E, se eu estiver errando a cronologia, Tyler, encontre as outras pessoas das fitas e diga a elas que você começou a espiar secretamente os outros muito antes de eu flagrar você.
Vocês farão isso, certo? Todos vocês? Vão preencher as lacunas? Por cada história que estou contando deixa muitas perguntas sem resposta
Sem resposta? Eu teria respondido a qualquer pergunta, Hannah. Mas você nunca perguntou.
Por exemplo: há quanto tempo você me espionava, Tyler? Como você sabia que meus pais estavam fora da cidade naquela semana?
Em vez de fazer perguntas, naquela noite na festa, você começou a gritar comigo. É hora da confissão.
A regra na minha casa, quando meus pais estão fora, é que eu não estou autorizada a sair com garotos. A impressão deles, embora nunca tenham realmente dito isso, é que eu poderia gostar demais do encontro e convidar o garoto a entrar.
Nas histórias anteriores, contei a vocês que os boatos que todos ouviram a meu respeito não eram verdadeiros. E não são. Mas eu nunca disse que era uma santa. Eu de fato saí quando meus pais não estavam em casa, mas só porque eu podia ficar na rua o quanto quisesse. E como você sabe, Tyler, na noite em que tudo isso começou, o garoto com quem eu saí andou comigo o caminho todo, até a porta da frente da minha casa. E ficou parado ali, até eu tirar minhas chaves para destrancar a porta... aí ele foi embora.
Tenho medo de conferir, mas fico imaginando se as pessoas no Monet's não estão me encarando. Será que podem enxergar, pela minha reação, que não é música que estou escutando?
A luz do quarto de Tyler continua apagada. Ou ele está tendo uma conversa detalhada com seus pais, ou continua faminto.
Ótimo, faça as coisas do seu jeito, Tyler. Eu continuarei falando a seu respeito. Você estava esperando que eu convidasse o cara para entrar? Ou isso teria deixado você com ciúmes?
Mexo o café com a pazinha de madeira.
De qualquer modo, depois que entrei — sozinha! —, lavei o rosto e escovei os dentes. E, no momento em que entrei no meu quarto... Clique.
Todos nós sabemos o som que uma câmera faz quando bate uma foto. Até algumas câmeras digitais fazem isso, para simular certa nostalgia. E sempre mantenho minha janela aberta, alguns centímetros, para deixar entrar ar fresco. Foi assim que percebi que tinha alguém parado ali fora.
Mas me recusei a acreditar. Era perturbador demais admitir aquilo, na primeiríssima noite de férias dos meus pais. Eu estava pirando, só isso, disse a mim mesma. Estava apenas precisando me acostumar a ficar sozinha. Mesmo assim, não fui tão burra a ponto de me trocar na frente da janela. Por isso, sentei na cama. Clique.
Que idiota, Tyler. No ensino fundamental algumas pessoas achavam que você tinha problemas mentais. Mas você não tinha. Você era simplesmente um idiota.
Ou talvez não fosse um clique, eu disse a mim mesma. Talvez fosse um rangido. A estrutura de madeira da minha cama range um pouco. Era isso. Tinha de ser um rangido.
Puxei as cobertas para cima do corpo e tirei a roupa debaixo delas. Ai, vesti meu pijama, fazendo tudo da maneira mais lenta possível, com medo de que quem estivesse lá fora batesse mais uma foto. Afinal, eu não estava totalmente certa do que excitava um voyeur.
Mas espera – mais uma foto provaria que ele estava ali fora, certo? Aí, eu poderia chamar a polícia e... Mas na verdade eu não sabia o que fazer. Meus pais não estavam em casa. Eu estava sozinha. Calculei que minha melhor opção seria ignorá-lo. E, mesmo ele estando do lado de fora, fiquei com medo demais do que poderia acontecer se me visse pegando o telefone.
Burrice? Foi sim. Mas fazia sentido? Fazia sim... naquele momento.
Você deveria ter chamado a polícia, Hannah. Isso poderia ter impedido que a bola de neve ganhasse velocidade. Essa da qual você fica falando.
A que atropelou todos nós.
Então, para início de conversa, por que foi tão fácil para Tyler enxergar dentro do meu quarto? É isso que vocês estão perguntando? Se eu sempre durmo com as persianas totalmente abertas?
Boa pergunta para vocês que gostam de pôr a culpa na vítima.
Mas não era tão fácil assim. As persianas eram mantidas abertas em certo ângulo, exatamente do jeito que eu gostava. Nas noites de céu limpo, com a cabeça no travesseiro, eu podia adormecer olhando as estrelas. E, nas noites de tempestade, podia ver relâmpagos iluminarem as nuvens.
Eu já fiz isso, adormecer olhando para fora. Mas, no segundo andar, não preciso me preocupar com pessoas enxergando o que acontece dentro de casa.
Quando meu pai descobriu que eu mantinha as persianas abertas — mesmo que fosse só uma fresta —, foi até a rua para se assegurar de que ninguém podia me ver. E ninguém podia. Aí, ele veio andando desde a calçada, atravessando o jardim, até minha janela. E o que foi que ele descobriu? A não ser que a pessoa fosse muito alta e ficasse muito perto da janela, na ponta dos pés, eu era invisível.
E então, quanto tempo você ficou parado desse jeito, Tyler? Deve ter sido bem incômodo. E se você estava disposto a passar todo esse incômodo só para dar uma espiada em mim, espero que, pelo menos, tenha ganhado alguma coisa com isso.
Ele ganhou. Mas não o que queria. Em vez disso, ganhou isto aqui.
Se eu soubesse que era o Tyler, naquele momento, se eu tivesse me estirado abaixo das persianas e olhado bem para o seu rosto, eu teria corrido para fora e feito ele passar a maior vergonha.
O que, de fato, leva à parte mais interessante da...
Espera aí! Aí vem você. Vamos guardar essa história para depois.
Empurro minha caneca de café, da qual não tomei nem metade, para a outra ponta da mesa.
Me deixem descrever a janela do Tyler. As persianas estão totalmente abaixadas, mas, ainda assim, dá pra enxergar lá dentro. São feitas de bambu, ou de uma imitação de bambu, e entre cada vara há espaços de tamanhos variados. Se eu ficar na ponta dos pés, como Tyler fez, consigo alcançar um vão razoavelmente aberto e ver tudo.
OK, ele está acendendo a luz e... fecha a porta. Ele está... está sentando na cama. Está arrancando os sapatos e... agora as meias.
Solto um grunhido. Por favor, não faça nenhuma besteira, Tyler. É seu quarto, você pode fazer o que quiser, mas não vá se envergonhar ainda mais.
Talvez eu devesse alertá-lo. Dar a ele uma chance de se esconder. De tirar a roupa debaixo das cobertas. Talvez eu devesse dar uma batidinha na janela. Ou socar, chutar a parede. Talvez eu devesse proporcionar a ele a mesma paranoia que ele me proporcionou.
Ela está levantando a voz. Será que quer ser pega?
Afinal, é por isso que estou aqui, certo? Vingança?
Não, por vingança seria divertido. Vingança, de alguma maneira, me daria algum sentimento de satisfação. Mas isto aqui, ficar do lado de fora da janela do Tyler, não satisfaz.
Estou decidida.
Então por quê? Por que estou aqui?
Bem, o que foi que eu disse? Só disse que não estou aqui por minha causa. E, se passarem as fitas adiante, ninguém, exceto vocês que estão na lista, jamais escutará o que estou dizendo.
Então, por que estou aqui?
Conta pra gente. Por favor, Hannah. Conta pra mim, por que estou escutando isso. Por que eu?
Não estou aqui para observar você, Tyler. Fica calmo. Não ligo para o que você está fazendo. Na verdade, nem estou observando você agora. Minhas costas estão contra a parede e olho fixamente para a rua.
É uma daquelas ruas com árvores dos dois lados, seus galhos se encontrando lá no alto, como pontas de dedos que se tocam. Parece poético, não? Eu até já escrevi, uma vez, um poema comparando ruas como essa à minha cantiga infantil favorita:
“Se essa rua, se essa rua fosse minha... blá -blá-blá...”.
Um de vocês até leu o poema que escrevi. Falaremos sobre isso depois.
Mais uma vez, não é de mim que ela está falando. Eu nem sabia que Hannah escrevia poesia.
Estou falando do Tyler agora. E continuo na rua do Tyler. Sua rua escura e vazia. Ele não sabe que estou aqui... ainda. Portanto, vamos encerrar esta história antes de ele ir para cama.
No colégio, no dia seguinte, depois da visita do Tyler à minha janela, eu contei para uma garota que sentava na minha frente o que havia acontecido. Essa garota é conhecida por saber escutar os outros e ser solidária, e queria que alguém sentisse medo por mim. Queria que alguém entendesse minhas angústias.
Pois bem, ela definitivamente não era a garota indicada para esse serviço. Essa garota tem um lado depravado que pouquíssimos de vocês conhecem.
"Um voyeur?”, ela perguntou, "você quer dizer um voyeur de
verdade?
"Acho que sim", eu afirmei.
"Sempre tentei imaginar como seria isso", ela meio que se animou. "Ter um voyeur na sua vida é algo... sei lá... sexy."
Definitivamente depravada. Quem seria ela?
E por que me importo com isso?
Ela sorriu e ergueu uma sobrancelha.
"Você acha que ele vai voltar?"
Sinceramente, a ideia de ele voltar nunca tinha me ocorrido.
Mas agora ela estava me assustando.
“E se ele voltar?” perguntei.
“Aí, você vai ter de me contar”, ela falou. E me virou as costas, encerrando a nossa conversa.
Essa garota e eu nunca tínhamos andado juntas. Fazíamos as mesmas matérias, éramos simpáticas uma com a outra na classe, e às vezes conversávamos sobre combinar algo, mas nunca combinamos.
Aí está, pensei, uma oportunidade de ouro.
Eu a chamei com um tapinha no ombro e contei que meus pais estavam cidade. Será que ela não gostaria de ir comigo e dar um flagra num voyeur?
Depois da aula, fomos até a casa dela pegar umas coisas. E seguimos juntas para a minha. Como era um dia de semana e ela provavelmente ficaria fora até tarde, disse aos seus pais que iríamos fazer um trabalho da escola. Será que todo mundo usa essa desculpa?
Terminamos nossa lição de casa na mesa de jantar e ficamos esperando escurecer lá fora. O carro dela ficou estacionado na garagem, como isca.
Duas garotas. Irresistível, certo?
Eu me retorço um pouco, mudando de posição na cadeira.
Fomos para o meu quarto e sentamos, com as pernas cruzadas, em cima da cama, uma de frente para a outra, conversando sobre tudo que se pode imaginar. Para flagrar nosso voyeur, sabíamos que precisávamos conversar baixinho. Precisávamos ouvir aquele primeiro... Clique.
O queixo dela caiu. Seus olhos, nunca os vi tão alegres.
Ela cochichou para eu continuar falando.
“Finge que não ouviu. Vai só me acompanhando no que eu vou inventar agora”.
Concordei.
Ela cobriu a boca com a mão e começou a improvisar.
“Ai, meu Deus! Onde você deixou ele te tocar?"
Nós “fofocamos” por uns dois minutos, tentando segurar qualquer risada inadequada — do tipo que poderia nos entregar. Porém, os cliques pararam e nós já estávamos ficando sem assunto.
"Você sabe do que eu estou precisando?", ela perguntou. "De uma boa massagem nas costas, daquelas bem fortes." "Você é malvada", sussurrei.
Ela piscou para mim, se ergueu de joelhos e esticou as mãos para a frente, como um gato se espreguiçando, até ficar toda alongada em cima da minha cama. Clique.
Eu sinceramente espero que você tenha queimado ou apagado essas fotos, Tyler. Porque, se elas vierem a público, mesmo não sendo por sua culpa, eu nem quero pensar no que poderia acontecer com você.
Montei em cima das costas dela. Clique.
Afastei o cabelo dela para o lado. Clique.
E comecei a esfregar os ombros. Clique. Clique.
Ela se virou de costas para a janela e cochichou:
"Você sabe o que vai acontecer se ele parar de tirar fotos, certo?"
Disse que não.
"Ele vai fazer aquela coisa." Clique.
"Ai, ai", ela gemeu.
Continuei massageando seus ombros. De fato, achei que estava fazendo um ótimo trabalho, porque ela parou de conversar e seus lábios se curvaram num belo sorriso. Ela teve uma nova ideia. Uma maneira de pegar aquele tarado em flagrante.
Eu disse que não. Uma de nós deveria sair do quarto, dizer que precisava usar o banheiro e chamar a polícia.
Podíamos acabar com aquilo naquele momento.
Mas isso não aconteceu.
"De jeito nenhum", ela insistiu. "Não vou embora antes de descobrir se eu conheço esse cara. E se ele for da escola?" "E se ele acabar se...", não consegui continuar.
Ela me mandou seguir sua deixa, rolando de lado para sair debaixo de minhas pernas. De acordo com o seu plano, quando ela dissesse "três", eu deveria correr para a janela. Eu pensei que o voyeur tivesse ido embora — talvez com medo — porque não ouvi mais nenhum clique depois que saí de cima dela.
"Está na hora de passar uma loção para a pele", ela provocou.
Clique.
Esse som fez minha raiva atravessar o telhado. Tudo bem, eu posso jogar esse jogo, pensei. "Pega na minha gaveta de cima."
Ela apontou para a gaveta mais próxima à janela e eu fiz um movimento positivo com a cabeça.
Embaixo dos braços, minha camisa está ligeiramente úmida. Eu me mexo desconfortavelmente na cadeira de novo. Mas não consigo parar de escutar.
Ela abriu a gaveta, olhou para dentro e cobriu a boca com a mão.
O quê? Não havia nada na minha gaveta digno de uma reação daquelas. Não havia nada no meu quarto inteiro digno daquilo.
"Eu não sabia que você curtia isso", ela falou, em voz bem alta. "Nós devíamos usar isso... juntas."
"Hum, está bem", eu concordei.
Ela enfiou a mão na gaveta, empurrou algumas coisas para lá e para cá, e cobriu a boca novamente. "Hannah?", ela gritou. "Quantos desse você tem? Você é uma garota bem safada."
Clique. Clique. Muito esperta, pensei.
"Por que você não conta quantos tem?"
Foi o que ela fez.
“Deixa eu ver. Aqui tem um... e dois..."
Escorreguei um pé para fora da cama.
"... três!"
Pulei para perto da janela e puxei o cordão com tudo. As persianas voaram para cima. Procurei seu rosto, mas você se mexia muito depressa.
A outra garota, ela não estava olhando para o seu rosto Tyler.
"Ai, meu Deus!", berrou ela. "Ele está enfiando o pinto dentro
da calça!”.
Tyler, onde quer que você esteja, sinto muito. Você merece isso, mas sinto muito.
Então quem era você? Eu vi sua estatura, a cor do seu cabelo, mas não consegui ver seu rosto com clareza suficiente. Ainda sim, você se entregou, Tyler. No dia seguinte, na escola, eu fiz para um monte de gente a mesma pergunta: “Onde você estava ontem à noite?” Alguns disseram que estavam em casa, ou na casa de um amigo. Ou no cinema. O que é que te interessa? Mas, você, Tyler você veio com a resposta mais defensiva — e interessante — de todas:
"O quê, eu? Em lugar nenhum."
E, por alguma razão, contar para mim que não estava em lugar nenhum fez seus olhos se retorcerem e sua testa começar a suar.
Que idiota você é, Tyler.
Ei, pelo menos, você é original. E, pelo menos, parou de rondar minha casa. Mas sua presença, Tyler, ela nunca foi embora.
Depois das suas visitas, fechei as persianas vedando-as ao máximo todas as noites. Tranquei as estrelas do lado de fora e nunca mais vi os relâmpagos. Todas as noites eu simplesmente apagava as luzes e ia para a cama. Por que você não me deixou em paz, Tyler? Minha casa. Meu quarto. Deviam ser lugares seguros para mim. Seguros contra tudo que estivesse do lado de fora. Mas você foi a pessoa que tirou tudo isso de mim. Bom... nem tudo.
A voz dela treme.
Mas tirou o que havia sobrado...
Ela faz uma pausa. E, dentro desse silêncio, percebo a intensidade com que venho olhando fixamente para o nada.
Olhando fixamente na direção da minha caneca, na outra ponta da mesa. Mas não exatamente para ela.
Eu fico com vontade de olhar em torno, mas me sinto muito intimidado para encarar as pessoas à minha volta. Tentando entender essa expressão de dor no meu rosto. Tentando decifrar quem é esse pobre garoto escutando essas ultrapassadas fitas cassete.
Então, qual é a importância da sua segurança, Tyler? E da sua privacidade? Talvez não sejam tão importantes para você como eram para mim, mas não cabe a você decidir.
Olho pela janela, por trás do meu reflexo, para o jardim do pátio iluminado. Não consigo enxergar se ainda tem alguém ali, atrás da coluna de tijolos e trepadeiras, alguém sentado na mesa dela.
Uma mesa que, em certo momento, também era um local seguro para Hannah. Então, quem é essa garota misteriosa estrelando sua história, Tyler? Que sorriu tão bonito quando eu a massageei? Que me ajudou a expor você? Será que eu deveria contar?
Depende. Será que ela me fez alguma coisa, alguma vez? Para ouvir a resposta... ponham a fita três.
Mas eu estava preparado para que fosse eu, Hannah. Estou preparado para acabar com tudo isso.
Ah, Tyler, estou parada do lado de fora da sua janela novamente. Eu me adiantei pouco para terminar sua história, mas a luz do seu quarto se apagou faz algum tempo... Por isso, estou de volta.
Há longa pausa. Folhas farfalhando.
Toc-toc, Tyler.
Eu escuto aquilo. Ela batendo na janela. Duas vezes.
Não se preocupe. Você logo logo vai descobrir.


Tiro os fones de ouvido, enrolo o fio amarelo bem apertado em torno do walkman e enfio o aparelho no bolso da jaqueta.
Do outro lado do salão, a estante do Monet's está abarrotada de livros velhos. Na maioria, livros usados. Histórias de bangue-bangue em edições de bolso, esotéricos, ficção científica.
Vou abrindo caminho com cuidado entre as mesas lotadas até lá.
Um dicionário gigante de sinônimos está ao lado de um dicionário de capa dura sem lombada. Na tira de papel exposta, alguém escreveu dicionário com tinta preta, em letras grossas. Empilhados na mesma prateleira, cada qual com uma cor diferente, estão cinco livros. Eles têm aproximadamente o tamanho de um álbum de ano escolar, mas são vendidos com as páginas em branco. Livros de rascunho. A cada ano acrescentam um desses, e as pessoas rabiscam o que quiser neles. Registram ocasiões especiais, escrevem poemas horríveis, fazem esboços de desenhos bonitos ou grotescos, simplesmente soltam o verbo.
Cada livro tem um retalho de fita-crepe na lombada onde está escrita uma data. Puxo o livro do nosso primeiro ano no colégio. Com todo o tempo que Hannah passou no Monet's, talvez tenha escrito algo aqui. Tipo um poema. Ou talvez ela possuísse outros talentos que eu desconheça. Talvez soubesse desenhar. Estou apenas procurando algo que não tenha a ver com essa coisa feia que está nas fitas. Preciso de algo assim neste instante. Preciso vê-la de maneira diferente.
A maioria das pessoas marca a data de suas anotações, viro páginas mais para o final. Até setembro. E ali está.
Para marcar a página certa, fecho o livro em cima do dedo indicador e o levo de volta para a mesa. Tomo um gole lento de café morno, reabro o livro e leio as palavras, escritas em tinta vermelha, perto do alto da página: "Um, dois, três, todo mundo precisa de um chamado para sair da toca!".
Está assinado com três conjuntos de iniciais: J.D.; A.S.; H.B.
Jessica Davis. Alex Standall. Hannah Baker.
Abaixo das iniciais, enfiada no vinco entre as páginas, alguém prendeu uma fotografia de cabeça para baixo. Eu puxo a foto, viro de lado e giro para cima. É Hannah.
Eu amo o sorriso dela. E eu cabelo ainda estava comprido.
Um de seus braços rodeia a cintura de outra menina.
Courtney Crimsen. E atrás delas tem uma multidão.
Ela parece nervosa, eu acho.



Por quê?

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