Fita 1: Lado B

Bem-vindos de volta. E obrigada por aparecerem para a parte dois.
Ajeito o walkman dentro do bolso da jaqueta e aumento o volume.
Se você estiver escutando este lado da fita, uma de duas coisas acaba de acontecer. A: você é o Justin e, depois de ouvir a sua historinha, quer ouvir quem é o próximo. Ou B: você é outra pessoa e está esperando para ver se a próxima história é sua. Pois bem...
Uma faixa de suor quente brota na minha testa perto da raiz dos cabelos.
Alex Standall, é a sua vez.
Uma única gota de suor desliza têmpora abaixo, e eu a enxugo.
Tenho certeza que você não sabe por que está aqui, Alex. Você provavelmente acha que fez uma coisa boa, certo? Você votou em mim como a melhor bunda do primeiro ano. Como alguém poderia ficar com raiva disso? Escute.
Eu sento na guia, com os sapatos enfiados na sarjeta. Perto do meu calcanhar, algumas lâminas de grama espicham do cimento. Embora o sol mal tenha começado a cair atrás dos telhados e das árvores, os postes se acendem dos dois lados da rua.
Em primeiro lugar, Alex, se você pensa que estou sendo boba... se você acha que sou uma garotinha estúpida que faz o maior escândalo por causa de uma coisinha mínima, levando tudo a sério demais, ninguém está obrigando você a me escutar. É claro que eu estou te pressionando com aquele segundo jogo de fitas, mas quem se importa se o pessoal aí da cidade ficar sabendo o que você pensa da minha bunda, certo?
Nas casas do quarteirão, e na minha casa, a várias quadras de distância, as famílias estão acabando de jantar. Estão enchendo a máquina de lavar louça, ou as crianças estão começando a lição de casa.
Para essas famílias, nesta noite, tudo está normal.
Eu posso citar toda uma lista de pessoas que se importariam. Posso citar uma lista de pessoas que se importa riam muito se essas fitas viessem a público.
Então, que tal a gente começar?
Curvando o corpo para a frente, abraço as pernas e pressiono a testa sobre os joelhos.
Lembro que eu estava sentada na sala, na segunda aula, na manhã que sua lista surgiu. A srta. Strumm obviamente tinha tido um fim de semana sensacional, porque não havia preparado absolutamente nada. Ela nos fez assistir a um daqueles seus documentários tediosos. Nem me lembro sobre o que era. Mas o narrador tinha um forte sotaque britânico. Me lembro de ficar cutucando um pedaço velho de durex grudado na minha carteira para não dormir. Para mim, a voz do narrador não passava de um som de fundo.
Bem, a voz do narrador... e os cochichos.
Quando levantei os olhos, os cochichos pararam. Qualquer olhar que estivesse sobre mim foi desviado. Mas eu vi o papel sendo passado de mão em mão. Uma única folha, correndo para cima e para baixo entre as fileiras. Em certo momento ela acabou chegando à carteira atrás de mim - a carteira do Jimmy Long, que gemia quando ele se mexia.
Qualquer um de vocês que estava na sala de aula naquela manhã pode me dizer: Jimmy estava espiando por cima das costas da minha cadeira, não estava? Foi só o que eu pude imaginar quando ele cochichou:
“Pode apostar que é mesmo.
Junto os joelhos com mais força. Jimmy Jumento.
Alguém cochichou:
“Seu jumento idiota!
Eu me virei para trás, mas não estava afim de cochichar.
“Pode apostar que é o quê?”
Jimmy, que se esbalda com qualquer atenção que recebe de uma garota, deu sorriso amarelo e olhou para baixo, para o papel em cima da sua carteira.
Novamente veio o cochicho: “idiota”... desta vez, repetido de uma ponta a outra da sala, como se ninguém quisesse que eu participasse da brincadeira.
Quando vi aquela lista pela primeira vez, na aula de história, foram poucos os nomes que não reconheci. Com algumas alunas novas eu ainda não tivera contato, ou não sabia direito o nome delas. Mas Hannah, eu sabia o nome dela.
E eu ri quando o vi. Ela estava criando uma reputação e tanto, em pouquíssimo tempo.
Só agora eu percebo que a reputação dela começou na imaginação do Justin
Foley.
Inclinei a cabeça para conseguir ler o título no papel, que estava de cabeça para baixo: “CLASSE DO PRIMEIRO ANO: QUEM É GOSTOSA/QUEM NÃO
É”.
A carteira do Jimmy gemeu mais uma vez quando ele se sentou de novo. Eu sabia que a srta. Strumm estava chegando, mas tinha de encontrar meu nome.
Não interessava por que eu estava na lista. Na época, acho que não me importava nem com que lado da lista eu estava. Acontece uma coisa estranha quando todo mundo concorda a respeito de algo - algo a seu respeito -, que revira o estômago.
E, a medida que a srta. Strumm se aproximava entre as carteiras, pronta para pegar a lista antes de eu encontrar o meu nome, meu estômago endoideceu. Onde estava o meu nome? Onde? Achei!
Mais tarde, naquele mesmo dia, ao cruzar com Hannah no corredor, dei uma olhada para trás quando ela passou. E tive de concordar. Ela definitivamente pertencia àquela categoria.
A srta. Strumm apanhou a lista e eu me virei de volta para a frente. Depois de alguns minutos criando coragem, dei uma espiada no outro lado da sala. Como eu esperava, Jessica Davis parecia irritada.
Por quê? Porque bem junto do meu nome, mas na outra coluna, estava o dela.
Seu lápis batia no caderno a uma velocidade de código Morse e seu rosto ardia, de tão vermelho.
A única coisa que eu pensei? Graças a Deus não entendo código Morse.
A verdade é que Jessica Davis é muito mais bonita do que eu. Escreva uma lista com todas as partes do corpo e você terá uma coluna cheia de tiques, de cima a baixo, marcando todas as vezes em que o corpo dela ganha do meu.
Eu discordo, Hannah. A coluna inteira, de cima a baixo.
Todo mundo sabe que a “pior bunda do primeiro ano” foi uma farsa. Não dá para considerar aquilo nem meia verdade. Mas tenho certeza que ninguém se importava com a razão pela qual a Jessica foi parar daquele lado da lista, Alex.
Bem, ninguém exceto você... e eu... e a Jessica, três no total.
E muito mais gente, segundo meu palpite, está prestes a descobrir a razão.
Talvez algumas pessoas achem que você estava certo em me escolher. Eu não penso assim. Eu não acho que meu rabo - como você diz - foi o fator decisivo. Eu acho que o fator decisivo foi... vingança.
Arranco a grama da sarjeta e me levanto para ir embora. Quando saio andando, esfrego as folhas entre os dedos até elas se desfazerem no chão.
Mas esta fita não fala do que levou você afazer isso, Alex, embora o assunto seja tratado logo mais. Esta fita fala de como as pessoas mudam quando veem o nome delas numa lista estúpida. Esta fita é sobre...
Uma pausa na fala dela. Meto a mão dentro da jaqueta e aumento volume. Ela está desamarrotando um pedaço de papel. Alisando-o.
Certo. Acabo de olhar cada nome - cada história - que completa essas fitas.
Adivinha? Cada um dos acontecimentos documentados aqui talvez nunca tivesse ocorrido se você, Alex, não tivesse escrito meu nome naquela lista. É simples assim.
Você precisava de um nome para colocar contra o da Jessica. E já que todo mundo na escola tinha uma imagem pervertida de mim depois do teatrinho do Justin, eu era a escolha perfeita, não era?
E a bola de neve segue rolando. Obrigada, Justin.
A lista do Alex era uma brincadeira. Uma brincadeira de mau gosto, é verdade.
Mas ele não sabia que afetaria Hannah dessa maneira. Isso não é justo.
E eu? O que foi que eu fiz? De que modo Hannah vai dizer que eu a marquei? Porque não tenho ideia. E, depois que as pessoas ouvirem, o que vão pensar quando me encontrarem? Algumas delas, pelo menos duas, já sabem por que estou na lista. Será que me veem de maneira diferente agora?
Não. Não podem. Porque meu nome não pertence a esse grupo. Eu não deveria estar na lista. Tenho certeza. Não fiz nada de errado!
Então, voltando um pouco, esta fita não fala sobre o que levou você a fazer aquilo, Alex. É sobre as repercussões do que você fez. Mais especificamente, sobre as repercussões relacionadas a mim. E sobre aquelas coisas que você não planejou... coisas que não podia planejar.
Meu Deus. Eu não acredito.

▌▌


A primeira estrela vermelha. A antiga casa da Hannah. Aqui está ela.
Não acredito.
Eu já tinha ido a essa casa numa outra ocasião. Depois de uma festa. Um casal idoso mora aqui agora. E, certa noite, cerca de um mês atrás, o marido estava dirigindo a algumas quadras dali, conversando com a esposa pelo celular, quando atingiu outro carro.
Fecho os olhos e balanço a cabeça, lutando contra a lembrança. Não quero vê-la. Mas não consigo evitar. O homem estava histérico. Chorando.
― Preciso telefonar para ela! Preciso telefonar para minha esposa! ― O telefone desaparecera em algum canto na hora da batida. Tentamos usar o meu celular, mas o telefone da esposa só dava sinal de ocupado. Ela estava confusa, com medo demais para desligar. Queria continuar na linha, a linha em que o marido ligara para ela alguns minutos antes.
Ela tinha problemas cardíacos, ele disse. Ela precisava saber que ele estava bem. Liguei para a polícia, usando meu telefone, e disse ao homem que continuasse tentando falar com a esposa. Mas ele me disse que eu tinha de contar para ela. Ela precisava saber que ele estava bem. A casa deles não ficava longe.
Uma pequena multidão se juntara, alguns cuidando da pessoa no outro carro.
Era alguém da nossa escola. Um aluno do último ano. E ele estava num estado muito pior que o do velho. Gritei para algumas dessas pessoas ficarem com o senhor que estava comigo até chegar uma ambulância. Aí, saí de lá, correndo até a casa dele, para acalmar sua esposa. Mas não sabia que estava correndo também para a casa onde Hannah havia morado.
Esta casa.
Desta vez, eu vou andando. Como Justin e Zach, venho descendo a pé pelo meio da rua em direção à East Floral Canyon, onde duas ruas se encontram num T virado de cabeça para baixo, assim como Hannah descreveu.
As cortinas da janela da sala da frente estão fechadas, porque já anoiteceu. Mas no verão anterior ao nosso primeiro ano no colégio, Hannah ficou ali com Kat.
As duas olharam para fora, onde estou agora, e observaram dois garotos subindo a rua a pé. Observaram eles tirarem o pé do asfalto e colocá-lo na grama molhada, escorregando e tropeçando um sobre o outro.
Sigo andando até alcançar a sarjeta, pressionando a ponta dos meus sapatos contra a guia. Coloco o pé em cima da grama e fico parado ali. Um passo simples, básico. Não escorrego e não consigo deixar de me perguntar se, caso Justin e Zach tivessem conseguido chegar até a porta da Hannah, ela não teria se apaixonado por Zach em vez de Justin, alguns meses depois. Será que Justin teria sido apagado dessa cena? Será que os boatos nunca teriam começado?
Será que Hannah ainda estaria viva?

O dia em que sua lista surgiu não foi tão traumático, eu sobrevivi. Sabia que era brincadeira. E as pessoas que eu vi nos corredores, rodeando qualquer um que tivesse uma cópia, também sabiam que era brincadeira. Uma grande, enorme e divertida brincadeira.
Mas o que acontece quando alguém diz que você tem a melhor bunda do primeiro ano? Eu vou contar, Alex, porque você nunca saberia. Isso dá às pessoas - algumas pessoas - sinal verde para lhe tratar como se você não fosse nada além daquela parte especifica do corpo.
Precisa de um exemplo? Ótimo. B-3 no mapa de vocês. Blue Spot Liquor.
Fica aqui perto.
Não tenho ideia por que o lugar se chama assim, fica apenas a uma quadra, ou algo assim, da minha primeira casa. Eu costumava ir a pé até lá sempre que me dava vontade de comer algo doce. O que significa que, sim, eu ia lá todos os dias.
O Blue Spot sempre teve uma aparência meio encardida, por isso nunca cheguei a entrar ali.
Noventa e cinco por cento das vezes, o Blue Spot estava vazio. Éramos eu e o homem do caixa. Wally era o nome dele, eu acho. Acho que muita gente nem sabe que este lugar existe, pois é minúsculo e fica espremido entre duas outras lojas, que já estavam fechadas quando nos mudamos para cá. Visto de fora, o Blue Spot parece um daqueles lugares cheios de anúncios de cigarro e bebidas. E de dentro? Bem, parece mais ou menos a mesma coisa.
Vou caminhando em frente à antiga casa da Hannah. Uma entrada para carros sobe por uma ligeira elevação do solo antes de desaparecer sob uma porta de garagem de madeira castigada pelo tempo.
Pendurada sobre a frente do balcão, uma prateleira de metal guarda todos os melhores doces. Bem, pelo menos são os meus favoritos. E, no momento que eu abro aporta, o homem da caixa registradora toca o som dela para mim - tcha-tching - antes mesmo de eu pegar um doce, porque ele sabe que eu nunca saio sem levar um.
Desde que chegou, Hannah ia para a escola numa bicicleta azul. Quase consigo visualizá-la agora. Bem aqui. Mochila nas costas, descendo na banguela a rampinha da garagem. Sua roda da frente vira e ela passa pedalando por mim.
Observo-a descer um longo trecho de calçada, passando por árvores, carros estacionados e casas. Fico parado, vendo sua imagem desaparecer.
Mais uma vez.
Aí, me viro lentamente e saio andando.
Sinceramente, todas as vezes em que estive no Blue Spot não lembro ter visto o cara do caixa emitir uma única palavra. Estou tentando lembrar um só “alô”, “oi” que seja, ou mesmo um grunhido amistoso. Mas o único som que eu, alguma vez, ouvi dele foi por sua causa, Alex.
Valeu! Alex! É isso mesmo. Ontem alguém o empurrou no corredor. Alguém empurrou Alex para cima de mim. Mas quem foi?
Aquele dia, como de costume, uma campainha tocou, em cima da porta, quando entrei. “Tcha-ting!”, fez a registradora. Escolhi um doce na prateleira sobre o balcão, mas não posso contar para vocês qual foi, porque não me lembro.
Segurei Alex para impedi-lo de cair. Perguntei se estava bem, ele simplesmente me ignorou, pegou a mochila do chão e saiu apressado pelo corredor. Será que fiz alguma coisa que o irritou? Perguntei a mim mesmo. Não consegui pensar em nada.
Se eu quisesse, poderia contar para vocês o nome da pessoa que entrou enquanto eu procurava dinheiro na mochila. Lembro bem quem foi, mas não passa de um entre os vários babacas que conheci na vida. Não sei, talvez eu devesse expor todos. Mas no que diz respeito da sua história, Alex, o ato dele - o ato horrível e nojento dele - foi apenas um efeito colateral do seu.
Além do mais, ele tem uma fita inteira só para ele...
Minhas sobrancelhas se contraem. O que teria ocorrido naquela loja por causa da lista do Alex?
Não, eu não quero saber. E não quero ver o Alex. Não amanhã. Nem depois de amanhã. Não quero ver Alex nem Justin. Nem o idiota do Jimmy Jumento.
Quem mais está envolvido nisso?
Ele abriu aporta do Blue Spot com força. “Qual é que é, Wally?”, falou com toda aquela arrogância, que soava tão natural saindo da sua boca. Deu para perceber que não era a primeira vez que ele falava daquele jeito, agindo como se o cara do caixa estivesse abaixo dele.
“Hannah, oi, ele disse, “não tinha visto você.
Eu o cumprimentei com um sorrisinho, achei meu dinheiro e coloquei na mão enrugada do Wally. Até onde percebi, ele não deu a mínima ao cara que havia entrado. Nem um olhar, um tremor no rosto ou um sorriso - como costumava me cumprimentar.
Sigo e dobro a esquina, me afastando das ruas residenciais, a caminho do Blue Spot.
É incrível como uma cidade pode mudar tanto na virada de uma esquina. As casas atrás de mim não eram grandes nem extravagantes. Bem classe média. Mas elas ficam de costas para esta parte da cidade, que há anos vem lentamente caindo aos pedaços.
“Ei, Wally, você sabia?
A respiração dele estava bem atrás do meu ombro, e ele olhava para o cara do caixa.
Minha mochila estava apoiada sobre o balcão quando a fechei com o zíper. O olhar do caixa se dirigiu para um pouco além da beirada do balcão, perto da minha cintura, e eu sabia o que viria em seguida.
Uma mão em concha deu uma palmada na minha bunda. E, então, ele disse:
“A melhor bunda do primeiro ano, cara! Bem aqui na sua loja!
Não são poucos os caras que eu consigo imaginar fazendo uma coisa dessas. O sarcasmo. A arrogância.
Machucou? Não. Mas não importa, certo? Porque a questão é: será que ele tinha o direito de fazer aquilo? Espero que a resposta seja óbvia.
Joguei a mão dele longe, aplicando uma rápida bofetada, um golpe que toda garota tem de dominar. E foi nesse momento que o caixa do balcão saiu de seu posto. Foi quando ele emitiu um som. Sua boca permaneceu fechada e aquilo não passou de um rápido estalo com a língua, mas aquele barulhinho me pegou de surpresa. Por dentro, eu sabia que Wally fervia de raiva.
E lá estava. O letreiro neon do Blue Spot Liquor.

▌▌

Nesta quadra, apenas duas lojas permanecem abertas: o Blue Spot Liquor e a Restless Video, do outro lado da rua. O Blue Spot parece tão encardido quanto da última vez que passei por ele. Até os anúncios de cigarro e bebida alcoólica parecem os mesmos. O papel de parede na janela da frente também.
Um sininho de latão badala quando eu abro a porta. A mesma campainha que Hannah escutava toda vez que entrava a fim de uma dose de açúcar. Em vez de deixar a porta bater atrás de mim, seguro e fecho empurrando devagar, observando o sininho tocar novamente.
 Posso ajudar? — Sem olhar, já sei que não é o mesmo cara do caixa. Mas por que estou decepcionado? Eu não vim ver o cara do caixa. Ele pergunta novamente, um pouco mais alto. — Posso ajudar?
Não consigo olhar para o balcão da frente. Ainda não. Não quero imaginá-la parada ali. No fundo da loja, atrás de uma geladeira de portas transparentes, estão as bebidas. Mesmo não estando com sede, vou até lá. Abro uma das portas e pego um refrigerante sabor laranja, a primeira garrafa plástica que vejo. Ando até a frente da loja e pego minha carteira. Uma prateleira de metal, carregada de doces e balas, fica pendurada sobre o balcão da frente. São esses os doces de que Hannah gostava.
Meu olho esquerdo começa a tremer involuntariamente.
— E só isso? — ele pergunta.
Coloco o refrigerante em cima do balcão e abaixo a cabeça, esfregando o olho. A dor começa em algum ponto acima dele, mas penetra no fundo. Atrás da minha sobrancelha. Uma pontada que nunca senti antes.
— Tem mais atrás de você — diz o atendente. Ele deve estar pensando que estou escolhendo algum doce.
Pego um chocolate com recheio de amendoim na prateleira o coloco ao lado do refrigerante. Ponho alguns dólares no balcão e empurro para ele.
“Tcha-tching!” Ele empurra de volta duas moedas, e noto um crachá de plástico fixado na caixa registradora.
— Ele ainda trabalha aqui? — pergunto.
— O Wally? — O atendente solta o ar pelo nariz. — Durante o dia.
Quando saio, o sino de latão badala.


 Joguei minha mochila em cima do ombro e provavelmente sussurrei “Com licença”; quando passei por ele, evitei olhá-lo de propósito.
Eu estava quase na porta, pronta para sair, quando ele agarrou o meu pulso e me fez girar.
Disse meu nome e, quando olhei dentro dos seus olhos, vi que não estava brincando.
Puxei meu braço com tudo, mas a mão dele me prendia bem apertado.
Do outro lado da rua, o letreiro em neon da Restless Video pisca erraticamente.
Sei de quem Hannah está falando agora. Já vi esse seu golpe de segurar o pulso de uma menina antes. Sempre me dá vontade de agarrá-lo pela camisa e empurrá-lo até ele soltar a garota.
Mas, em vez disso, todas as vezes finjo que não estou vendo.
O que eu poderia fazer?
O babaca me soltou e pôs a mão no meu ombro.
“Eu só estou brincando, Hannah. Relaxa, vai.”
Legal, vamos examinar o que acaba de acontecer. Pensei nisso durante todo o percurso do Blue Spot até minha casa, e talvez por isso não lembro o doce que comprei naquele dia.
Eu me sento na guia lascada, do lado de fora do Blue Spot, colocando o refrigerante de laranja ao meu lado e equilibrando a barra chocolate no joelho.
Não que eu esteja com vontade de algo doce.
Então, por que comprei isso? Só porque Hannah costumava comprar doces da mesma prateleira? E por que isso importaria? Eu fui até a primeira estrela vermelha. E à segunda. Não preciso ir a todos os lugares, nem fazer todas as coisas que ela mandar.
Primeiro, as palavras dele - depois, os atos.
Afirmação número um: “Eu só estou brincando, Hannah”.
Tradução: sua bunda é meu brinquedo. Você pode pensar que tem a palavra final sobre o que acontece com sua bunda, mas não tem. Pelo menos, não enquanto eu estiver “só brincando.
Dou um tapinha numa ponta do doce, fazendo-o balançar como uma gangorra no meu joelho. Afirmação número dois: “Relaxa, vai”.
Tradução: vamos lá, Hannah, tudo o que eu fiz foi tocar em você sem nenhuma indicação de que você quisesse. Se isso fizer você se sentir melhor, vai em frente, pode me tocar onde quiser.
Agora, vamos falar dos atos dele?
Ato número um: agarrar minha bunda.
Interpretação: é importante dizer que esse cara nunca tinha agarrado minha bunda antes. Então, por que fazer isso agora? Minha calça não tinha nada de especial. Não estava agarrada. Tudo bem que ela era um pouco baixa e ele provavelmente conseguiu dar uma boa olhada na minha cintura, mas ele não agarrou minha cintura. Ele agarrou minha bunda.
Estou começando a entender. Estou começando a sacar o que Hannah quer dizer. E isso abre um buraco negro na boca do meu estômago.
Melhores lábios. Essa era outra categoria da lista.
Alex, será que estou dizendo que sua lista deu a ele permissão para agarrar minha bunda? Não, estou dizendo que deu a ele um pretexto. E um pretexto era tudo que esse cara precisava.
 Foi só depois que essa lista apareceu que passei a notar os lábios de Angela Romero. Fiquei fascinado por eles. Quando ela apresentava um trabalho na aula eu não tinha ideia dos sentidos das palavras que saíam de sua boca.
Ficava só vendo aqueles lábios se mexerem para cima e para baixo. Hipnotizado quando ela dizia coisas como “serpente sinuosa”, que, atrás dos lábios, revelavam sua língua sibilando.
Ato número dois: ele agarrou meu pulso e pôs a mão no meu ombro.
Olha, eu nem vou interpretar isso. Só vou contar para vocês porque me irritou. Já agarraram minha bunda antes - nada demais -, mas dessa vez agarraram porque alguém escreveu meu nome numa lista. E quando esse cara viu que fiquei chateada, ele pediu desculpas? Não. Em vez disso ficou agressivo. Da maneira mais cara de pau, mandou que eu relaxasse. Pôs a mão no meu ombro, como se, com esse ato, ele fosse me confortar.
Aqui vai uma dica. Se você tocar uma garota, mesmo sendo de brincadeira, e ela o empurrar para longe, deixe... ela... em paz. Não toque nela novamente. Em lugar nenhum! Simplesmente pare. Ela vai sentir nojo se você fizer isso.
O resto da Angela não era nem de perto tão hipnótico quanto os lábios. Não era mau; simplesmente não era hipnótico.
No verão passado, na casa de um amigo, brincamos de rodar a garrafa, depois de um monte de gente ter admitido nunca ter entrado nesse jogo. Eu me recusei a deixar o jogo acabar antes que minha rodada na garrafa apontasse para Angela. Ou antes que a rodada dela apontasse para mim. Quando isso aconteceu, apertei os meus lábios, com lentidão e precisão agonizantes, contra os lábios dela.
Tem algumas pessoas doentes e pervertidas nesse mundo, Alex - e talvez eu seja uma delas -, mas a questão é que, quando você faz alguém se sentir ridículo, você tem de assumir a responsabilidade pela ação de outras pessoas que tomam isso como pretexto.
Mais tarde, Angela e eu demos uns amassos nos fundos da casa dela. Não conseguia parar de beijar aquela boca.
Tudo por causa de uma lista.
Na verdade, isso não está certo. Você não me fez sentir ridícula, fez? Meu nome estava na coluna das gostosas. Você escreveu o nome da Jessica na coluna das não gostosas. Você fez a Jessica se sentir ridícula. E é aqui que a nossa bola de neve começa a ganhar velocidade.
Jessica, minha querida... você é aproxima.


Abro o walkman e tiro a primeira fita.

No bolso menor da mochila encontro a fita seguinte. Aquela com o número três em azul, escrito no canto. Coloco-a no aparelho e fecho a portinha.

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