Fita 1: Lado A

Olá, meninos e meninas. Quem fala aqui é Hannah Baker. Ao vivo e em estéreo.
Não acredito.
Sem promessa de retorno. Sem bis. E, desta vez, sem atender aos pedidos da plateia.
Não posso acreditar. Hannah Baker se matou.
Espero que vocês estejam prontos, porque vou contar aqui a história da minha vida. Mais especificamente, por que ela chegou ao fim. E, se estiver escutando estas fitas você é um dos motivos.
Que? Como assim?
Não vou dizer qual fita tem a ver com sua participação na história. Mas, não precisa ter medo. Se você recebeu essa caixinha bonitinha, seu nome vai aparecer... Eu prometo.
Afinal, uma garota morta não mentiria.
Espera aí! Isso está parecendo uma piada. Por que uma garota morta não mentiria? Resposta: porque ela não pode mais falar!
Será que é um bilhete de suicídio às avessas?
Vai, pode rir.
Tudo bem. Eu achei engraçado
Antes de Hannah morrer, ela gravou este monte de fitas. Mas por quê?
As regras são bem simples. São só duas. Número um: você escuta. Número dois: você repassa. Espero que nenhuma delas seja fácil para você
— O que você está ouvindo?
— Mãe!
Levanto rápido e aperto várias teclas ao mesmo tempo.
▌▌

— Pô, mãe, você me assustou! Não é nada. É só um trabalho de escola.
Minha resposta automática para tudo. Vai sair e voltar tarde? Trabalho de escola. Preciso de mais dinheiro? Trabalho de escola. Agora, as fitas de uma menina. A menina que engoliu um monte de comprimidos há duas semanas.
—Trabalho de escola.
—Posso ouvir?
— Não é meu. — Arrasto a ponta do pé no chão. — Estou ajudando um amigo. É de história. E é chato.
— Se é assim, então você é mesmo um bom amigo.
Ela se apoia no meu ombro ergue um trapo empoeirado, uma das minhas velhas fraldas de pano, e tira uma fita métrica guardada embaixo. Beija minha testa.
— Vou te deixar em paz.
Espero a porta se fechada, coloco o dedo sobre o play. Meus dedos, minhas mãos, meus braços, meu pescoço, tudo em mim parece oco. Sem forças para apertar uma simples tecla.
Pego a fralda e jogo sobre a caixa de sapatos para tirá-la da minha visão. Queria nunca ter visto aquela caixa, nem as setes fitas dentro dela. Apertar oplay a primeira vez foi fácil. Moleza. Não tinha ideia do que ouviria.
Mas, agora, é uma das coisas mais assustadoras que já fiz.
Abaixo o volume e aperto play.
... um: você escuta. Número dois: repassa. Espero que nenhumas delas seja fácil para você.
Quando terminar de ouvir os treze lados – porque há treze lados para toda história – rebobine as fitas coloque-as de volta na caixa e repassa-as para quem vier depois da sua história. E você, que é o felizardo número treze, pode levar as fitas direto para o inferno. Dependendo da sua religião, talvez eu encontre você por lá.
Caso você se sinta tentado a romper as regras. Saiba que fiz uma cópia das fitas. Essas cópias serão liberadas de uma maneira bem escandalosa se o pacote não passar por todos vocês.
Não tomei essa decisão no calor do momento.
Não me menosprezem...mais uma vez.
Não de modo algum ela poderia pensar nisso.
Vocês estão sendo observados.

▌▌

Meu estomago se contrai todo, pronto para me fazer vomitar se eu deixar. Perto de mim tem um balde plástico, de cabeça para baixo, em cima de um banquinho. Com dois passos posso alcançar a sua alça e virá-lo para cima, se precisar.
Eu mal conhecia Hannah Baker. Quer dizer, queria conhecê-la. Queria conhecê-la melhor, mas não tive muita oportunidade. No verão, trabalhamos juntos no cinema. Não faz muito tempo, ficamos numa festa. Mas não tivemos oportunidade de nos aproximar. E nunca a menosprezei. Nunca.
Essas fitas não deveriam estar aqui. Não comigo. Só pode ser engano.
Ou uma brincadeira de mau gosto.
Puxo a lata de lixo, arrastando-a. apesar de já ter olhado uma vez, observo o embrulho de novo. Deve ter um endereço de remetente em algum lugar. Talvez não tenha enxergado.
As fitas do suicídio de Hannah Baker estão passando de mão em mão. Alguém fez uma cópia e me mandou só para me zoar. Amanhã, na escola, alguém vai rir ou dar um sorrisinho malicioso e desviar o olhar. Aí eu vou saber.
E então? O que vou fazer?
Eu não sei.


Quase que me esqueço, se você estiver na minha lista, deve ter recebido um mapa.
Deixo o embrulho cair de novo no lixo.
Eu estou na lista.
Algumas semanas atrás, alguns dias antes de Hannah tomar os comprimidos, enfiaram um envelope pela fresta do meu armário na escola. No lado de fora do envelope estava escrito em caneta vermelha: “Guarde isso. Você vai precisar”.
Dentro tinha um mapa da cidade dobrado. Mais ou menos uma dezena de estrelas vermelhas marcavam diferentes áreas.
Nos primeiros anos da escola, usamos esses mesmos mapas da Câmara de Comércio para aprender o norte, sul, leste, oeste. Pequenos números azuis, espalhados pelo mapa, remetiam ao nome dos estabelecimentos listados nas margens.
Guardei o mapa na mochila. Pensei em mostrar para o pessoal da escola, para ver se mais alguém tinha recebido. Para ver se alguém sabia o que significava aquilo. Mas, com o tempo, acabou escorregando para baixo dos livros e cadernos e me esqueci totalmente dele. Até agora.
Nas fitas vou falar de vários lugares da nossa querida cidade para você visitar. Não posso forçar ninguém a ir até lá, mas, se você estiver a fim de entender o que realmente aconteceu, então siga as estrelas. Ou se, se preferir, jogue fora o mapa.
E eu nunca vou ficar sabendo.
Enquanto Hannah fala através dos alto-falantes empoeirados, sinto o peso da mochila pressionar minhas pernas. Lá dentro, amassado em algum lugar no fundo está o mapa. Ou talvez, eu fique sabendo, na verdade, não tenho muita certeza de como essa coisa de morte funciona. Talvez eu esteja atrás de você bem agora.
Eu me inclino para a frente, apoiando os cotovelos na bancada. Enterro o rosto entre as mãos, escorrego os dedos para trás e me surpreendo com o cabelo molhado de suor.
Desculpa! Isso não foi legal.
Pronto Sr. Foley?
Justin Foley. Um aluno do último ano. Foi o primeiro beijo da Hannah.
Mas por que eu sei disso?
Justin, docinho, você foi meu primeiríssimo beijo. A primeiríssima mão que eu segurei. Mas você não passou de um cara mais ou menos. E não digo isso para ser má, não. Tinha alguma coisa em você que me fez precisar ser sua namorada. Até hoje, não sei bem que coisa era essa. Mas estava lá...e era de uma força absurda. Você não sabe disso, mas, há dois anos, quando eu estava no primeiro ano e você no segundo, eu costumava seguir você. Como aula prática, eu havia escolhido trabalhar na secretaria, por isso sabia quais eram suas aulas. Fiz até uma cópia dos seus horários, que tenho guardado aqui em algum lugar. E, quando vasculharem meus pertences provavelmente vão jogá-los fora, pensando que uma paixão de aluna do primeiro ano não tem importância. Mas será que tem?
Para mim, tem. Voltei no tempo até você para encontrar um início para a minha história. Aqui é onde ela realmente começa.
Então, onde estou nessa lista, entre essas histórias? Segundo? Terceiro? Será que vai piorar conforme for se desenrolando? Ela disse que o décimo terceiro felizardo podia levar as fitas para o inferno.
Quando você chegar ao fim das fitas, Justin, espero que compreenda o seu papel nisso tudo. Porque talvez pareça um papel pequeno agora, mas é importante. No fim, tudo tem importância.
Traição. É um dos piores sentimentos.
Sei que você não tinha atenção de me magoar. Na verdade, a maioria de vocês, que estão ouvindo as fitas, provavelmente não tinha ideia do que estavam fazendo... – do que realmente estava fazendo.
O que eu estava fazendo Hannah? Porque sinceramente não sei. Aquela noite, se for a noite que estou pensando foi tão estranha para mim quanto para voe. Talvez até mais para mim, já que continuou sem saber o que aconteceu.
Nossa primeira estrela vermelha pode ser encontrada em C-4. Com o dedo, ache a letra C e desça até o número 4. Isso mesmo, como batalha naval. Quando você termina de ouvir esta fita, vai até lá. Nós moramos naquela casa por pouco tempo no verão anterior ao meu ano de caloura no colegial; foi a primeira casa onde moramos quando chegamos a cidade.
E foi onde te vi pela primeira vez, Justin. Talvez você se lembre. Você estava apaixonado pela minha amiga Kat. Faltavam ainda dois meses para as aulas, e a Kat era a única pessoa que eu conhecia, porque morava bem na casa ao lado.
Ela me contou que você tinha ficado em cima dela no ano anterior. Não literalmente em cima, lógico. Só paquerando e esbarrando acidentalmente nela nos corredores. Quer dizer, os esbarrões eram por acaso, certo?
Kat me contou que, no baile do fim de ano. Você finalmente criou coragem para fazer algo além de olhar e tombar com ela. Vocês dançaram todas as músicas lentas juntos. Ela me falou que não ia demorar para deixar você beijá-la. O primeiríssimo beijo da vida dela. Que honra!
As histórias devem ser pesadas. Pesadas mesmo. É só por isso que as fitas estão passando de uma pessoa para outra. Por medo.
Por que alguém iria querer enviar pelo correio um pacote de fitas que culpassem você por um suicídio? Ninguém ia querer fazer isso. Mas Hannah quer que nós, todos da lista, escutemos o que ela tem a dizer. E faremos o que ela diz, passando as fitas adiante, nem que seja só para mantê-las longe das pessoas que não estão na lista.
“A lista”. Soa como um clube secreto. Um clube exclusivo.
E por alguma razão, estou nele.
Eu queria saber como você era, Justin, por isso ligamos da minha casa e pedimos para você dar um pulo até lá. Ligamos da minha casa porque Kat não queria que você soubesse onde ela morava... pelo menos não ainda...se bem que a casa dela ficava bem do lado.
Você estava jogando bola – basquete, beisebol, se lá – e podia aparecer mais tarde. Então, nós ficamos esperando.
Basquete. Muitos de nós, calouros do ensino médio, jogamos naquele verão, sonhando em entrar para o time do colégio. Justin, apesar de estar então só no segundo ano, já tinha um lugar reservado no time da universidade. Por isso, jogávamos com ele. Queríamos ser bons. Alguns conseguiram. Outros, infelizmente, não.
Ficamos sentadas na sacada, conversando durante horas, quando, de repente você e um de seus amigos – oi, Zach! – subiram a rua.
Zach? Zach Dempsey? A única vê que eu vi Zach com Hannah, mesmo que rapidamente, foi na noite que eu a conheci.
Duas ruas se encontram na frente da minha antiga casa, com um T de cabeça para baixo. Vocês vinham subindo pelo meio da rua, na nossa direção

▌▌

Espera. Espera. Eu preciso pensar.
Cutuco um respingo de tinta laranja seca na madeira. Por que estou escutando isso? Quero dizer, por que estou passando por isso? Porque simplesmente não arranco a fita do aparelho e jogo a caixa inteira no lixo?
Engulo com força. Lágrimas pinicam o canto dos meus olhos.
Porque é a voz da Hannah. Uma voz que pensei que jamais ouviria novamente.
Não posso jogá-la fora.
E por causa das regras. Olho para a caixa de sapatos escondida debaixo da fralda de pano. Hannah disse que fez uma cópia das fitas.
Mas e se ela não fez? Talvez se o lance das fitas for interrompida, se eu não passá-la adiante, fique por isso mesmo. A coisa acaba. Nada acontece.
Mas e se tiver algo nessas fitas que possa me magoar? E se não for uma brincadeira? Aí, um segundo jogo de fitas vai vir a público. Foi isso que ela disse. E todo mundo vai ficar sabendo o conteúdo delas.
O pontinho de tinta se solta como uma casca ferida.
Quem arrisca testar se ela está blefando?


Você pulou a sarjeta e botou um pé no gramado. Só que meu pai tinha deixado os regadores automáticos ligados durante a manhã inteira. A grama estava molhada, por isso seu pé deslizou para a frente e você caiu num espacate. Zach olhava fixamente para a janela, tentando obter uma visão melhor da nova amiga da Kat – esta que vos fala-, e tropeçou em você, aterrissando ao seu lado.
Você o empurrou e se levantou. Ai, ele também se levantou, e vocês dois se olharam sem saber o que fazer. E qual foi a decisão de vocês? Desceram a rua correndo, enquanto Kat e eu ríamos como loucas na janela.
Eu lembro disso. Kat achou muito engraçado. Ela me contou na festa de despedida dela naquele verão.
A festa em que vi Hannah Baker pela primeira vez.
Puxa. Achei Hannah tão bonita. E nova na cidade, foi o que realmente me pegou. Naquela época, quando encontrava uma garota minha língua se enrolava em nós que até um escoteiro não conseguiria desfazer. Mas, com ela eu podia tentar ser uma versão atualizada e melhorada de mim, Clay Jensen, o calouro do ensino médio.
A Kat se mudou antes de começarem as aulas, e eu me apaixonei pelo garoto que ela deixou. E não demorou muito para aquele garoto começar a demonstrar interesse por mim. Talvez pelo fato de eu parecer estar sempre por perto. Não fazíamos as mesmas aulas, mas as nossas salas no primeiro, quarto e quinto horários pelo menos eram próximas uma da outra. Certo, no quinto horário era uma caminhada e tanto, às vezes eu não consegui chegar lá antes de você sair, mas o primeiro e quarto horários ficavam no mesmo corredor.
Na festa de Kat, todo mundo foi para o quintal, embora estivesse congelado. Foi provavelmente a noite mais fria do ano. E eu, é claro, esqueci minha jaqueta em casa.
Depois de um tempo, consegui dar um jeito de dizer oi. E um tempinho depois, você conseguiu dar um jeito de responder. Ai, um dia passei por você sem dizer nada. Sabia que você não aguentaria essa, o que acabou nos levando à nossa primeiríssima conversa de várias palavras.
Não, foi isso: deixei a jaqueta em casa porque queria que todo mundo visse minha camisa nova. Que idiota.
“Oi!”, você disse. “Não vai me dizer oi?
Eu sorri, respirei, aí me virei
“Por que deveria?
“Porque você sempre diz oi
Perguntei por que se achava tão sabido a meu respeito. Disse que você provavelmente não sabia nada sobre mim.
Na festa da Kat, eu me abaixei para amarrar o sapato durante minha primeira conversa com Hannah Baker. E não conseguia fazer aquilo. Eu não conseguia amarra aquele estúpido cadarço porque meus dedos estavam anestesiados de tanto frio.
Devo reconhecer o mérito de Hannah por ela ter se oferecido para amarrá-lo para mim. É claro que não deixaria que ela fizesse aquilo. Esperei até o Zach se meter na conversa desajeitada para escapar de fininho para dentro da casa e descongelar meus dedos debaixo da água quente. Constrangedor.
Antes, quando eu perguntava para minha mãe como atrair a atenção de um garoto, ela dizia: “Se faça de difícil”. Era isso que eu estava fazendo. E com certeza funcionou. Você começou a aparecer nas minhas aulas, esperando por mim.
Parece que levou uma eternidade para você pedir o meu telefone. Mas eu sabia que você ia acabar pedindo, por isso comecei a treinar como dizer o número em voz alta, de um jeito desencanado como se eu não estivesse nem aí. Como se eu desse meu telefone cem vezes por dia.
Sim, os garotos da minha escola antiga já tinham pedido o meu telefone, mas, aqui, na nova, você foi o primeiro.
Não. Não é verdade. Mas você foi o primeiro que realmente conseguiu.
Não que eu não quisesse dar meu telefone antes. Mas eu precisava ficar esperta. Cidade nova. Escola nova. Dessa vez, eu ia controlar o modo como as pessoas me enxergavam. Afinal, quantas vezes a gente tem uma segunda chance?
Antes de você, Justin, sempre que alguém perguntava, eu dizia os números certos, até chegar no último. Aí, eu ficava com medo e me atrapalhava... meio sem querer, querendo.
Pego a mochila ponho no colo e abro o zíper do bolso maior.
Ver você anotando meu telefone me deixou super empolga. Ainda bem que você estava nervoso demais para notar. Quando finalmente confessei o último número, o número certo, dei aquele sorriso.
Sua mão tremia tanto que eu pensei que você fosse estragar tudo. Mas eu não ia deixar isso acontecer.
Eu tiro o mapa e Hannah da mochila e o desdobro sobre a bancada.
Apontei para o número que você estava escrevendo.
“Aqui é um sete”, eu falei.
“É um sete.
Uso uma régua de madeira para alisar as partes enrugadas.
“Ah. Tudo bem, desde que você saiba que é um sete.
“Eu sei”, você respondeu. Mas mesmo assim você riscou o número e fez um sete ainda mais tremido.
Puxei o punho da manga para dentro da palma da mão e quase estendi o braço para enxugar o suor da sua testa...algo que minha mãe teria feito.
Mas ainda bem que eu não fazia isso. Você nunca mais ia pedir o telefone de uma garota.
Minha mãe me chama do outro lado da porta. Eu abaixo o volume, pronto para  apertar o stop, se ela abrir.
- Fale, mãe.
Quando cheguei em casa, você já tinha ligado. Duas vezes.
- Pode continuar seu trabalho, quero saber se vai jantar conosco - ela diz.
Minha mãe perguntou quem você era, e eu disse que fazíamos uma matéria juntos. Você provavelmente só estava ligando para perguntar algo sobre a lição de casa. E ela falou que foi exatamente isso que você havia dito para ela.
Olho para baixo, para a primeira estrela vermelha. C-4. Seio onde fica esse lugar. Mas será que devo ir até lá?
Não consegui acreditar. Justin, você mentiu para minha mãe!
Porque isso me deixou tão feliz?
- Não. Vou para a casa de um amigo. Por causa do trabalho – respondi.
Porque nossas mentiras combinaram. Era um sinal.
- Tudo bem. Vou deixar um pouco do jantar na geladeira, para você esquentar mais tarde. – ela falou.
Minha mãe perguntou qual era a matéria que a gente fazia, e eu disse matemática, o que era totalmente mentira. Nós dois fazíamos matemática. Só não fazíamos juntos. E não era do mesmo tipo.
"Ótimo", minha mãe disse. "Foi o que ele me falou."
Eu a acusei de não confiar na própria filha, arranquei o pedacinho de papel com o seu número da mão dela e subi a escada correndo.
Eu vou lá. Na primeira estrela. Mas, antes disso, quando esse lado da fita acabar, vou até a casa do Tony. Tony nunca deu um upgrade no som do carro: ele ainda tem um toca-fitas. Assim, ele diz, controla melhor a música: se oferecer uma carona para alguém e essa pessoa trouxer a própria música, problema dela. "O formato não é compatível", ele justifica.
Quando você atendeu ao telefone, eu disse: "Justin? E Hannah. Minha mãe disse que você ligou por causa de um problema de matemática".
Tony dirige um velho Mustang, que seu irmão passou para ele, depois de ter ganhado do pai, que provavelmente ganhou do pai dele. Lá na escola, há poucos amores que se comparam ao amor entre Tony e seu carro. O número de garotas que dispensam o Tony por ciúme do carro é maior que o total de meninas que já beijei.
Você ficou confuso, mas acabou se lembrando que tinha mentido para minha mãe e, como um bom menino, pediu desculpas.
Embora Tony não possa ser chamado de um grande amigo, já fizemos alguns trabalhos de escola juntos; por isso sei onde ele mora. E o mais importante de tudo é que ele possui um walkman antigo que toca fitas. Um walkman amarelo, com fones de ouvido daqueles antigos, que ele me emprestará com certeza. Vou levar algumas fitas comigo e escutá-las enquanto caminho pela antiga vizinhança da Hannah, que fica mais ou menos a uma quadra da casa do Tony.
"Então, Justin, qual é o problema de matemática?", perguntei.
Você não ia se safar assim tão facilmente.
Ou talvez eu leve as fitas para algum outro lugar. Algum lugar com mais privacidade. Porque não dá para escutá-las aqui. Não que a minha mãe ou o meu pai reconheçam a voz nos alto-falantes, mas preciso de espaço. Espaço para respirar.
E você não perdeu nem um segundo. Você me disse que o Trem A saía da sua casa às 15h45 da tarde. O Trem B saía da minha casa dez minutos depois. Você não podia ver, Justin, mas eu cheguei a levantar a mão, como se estivesse na escola, em vez de sentada na beira da cama.
"Me escolhe, sr. Foley. Me escolhe", eu pedia. "Eu sei a resposta!"
Quando você me chamou, "sim, srta. Baker?", joguei a regra de "se faça de difícil" da minha mãe direto pela janela. Eu disse a você que os dois trens se encontravam no parque Eisenhower, ao pé do escorregador em forma de foguete.
O que Hannah viu nele? Nunca entendi isso. Até ela admite que é incapaz de dizer por quê. Mas, para um cara tão mais ou menos, tem um monte de garotas a fim do Justin.
Está certo que ele é meio alto. E talvez pareça intrigante para as meninas. Ele está sempre olhando para fora das janelas, contemplando alguma coisa.
Uma longa pausa do seu lado da linha, Justin. Uma looooooonga pausa mesmo.
"E, aí, quando os trens se encontram:"', você perguntou.
"Quinze minutos", eu propus.
Você disse que quinze minutos parecia terrivelmente demorado para dois trens que corriam a toda velocidade.
Nossa. Vai devagar, Hannah.
Eu sei o que vocês estão pensando. Hannah Baker é uma piranha.
Ops. Sacaram essa? Eu soltei um "Hannah Baker é". Não dá mais para dizer isso.
Ela para de falar.
Arrasto o banquinho para mais perto da bancada. As duas engrenagens do toca-fitas, escondidas atrás de uma janelinha de plástico fume, puxam a fita de um lado para o outro. Um leve chiado sai pelo alto-falante. Um suave zumbido de estática.
O que ela está pensando? Nesse momento, será que os olhos dela estão fechados? Será que ela está chorando? Será que seu dedo está em cima da tecla stop, esperando ganhar força para apertá-la? O que ela está fazendo? Não consigo ouvir!
Erraram. Há raiva na voz dela. Quase tremor.
Hannah Baker não é, nem nunca foi, uma piranha. O que nos leva à seguinte questão: O que foi que vocês ouviram dizer?
Eu só queria um beijo. Eu era uma garota do primeiro ano que nunca tinha sido beijada. Nunca. Mas eu gostava de um garoto, ele gostava de mim, e eu ia beijá-lo. A história — toda a história — é essa aí.
Qual era a outra história mesmo? Eu ouvi falar alguma coisa.
Algumas noites antes do nosso encontro no parque, eu tinha tido o mesmo sonho. Exatamente o mesmo. Do começo ao fim. E, para o prazer dos meus ouvintes, aqui vai.
Mas, primeiro, vamos contextualizar a história.
Na cidade onde eu morava havia um parque que tinha uma coisa igual ao Eisenhower: aquele foguete. Tenho certeza que foram feitos pela mesma empresa, porque eles eram idênticos. Um nariz vermelho apontando para o céu. Barras de metal correndo de cima a baixo, do nariz às barbatanas verdes que sustentavam a nave acima do chão. Entre o nariz e as barbatanas, havia três plataformas ligadas por três escadas. No andar de cima, uma direção de metal, redonda. No andar do meio, um escorregador que descia para o playground.
Em muitas noites antes do meu primeiro dia de aula aqui, eu escalava até o topo do foguete e deixava minha cabeça cair para trás, até encostar na direção. A brisa noturna soprando através das barras de metal me acalmava. Eu fechava os olhos e ficava pensando no lugar onde eu morava antes.
Eu subi ali uma vez, uma única vez, quando tinha cinco anos. Fiquei gritando e chorando desesperadamente e não queria descer por nada neste mundo. E meu pai era grande demais para passar pelos buracos. Aí, ele ligou para o corpo de bombeiros e eles mandaram uma combatente para me pegar. Devem ter feito um monte de resgates como esse porque, algumas semanas atrás, a cidade anunciou planos de derrubar o escorregador.
Acho que é por isso que, nos meus sonhos, meu primeiro beijo acontecia no foguete. Ele trazia uma lembrança de inocência. E eu queria que meu primeiro beijo fosse exatamente assim. Inocente.
Talvez tenha sido por isso que ela não marcou o parque com uma estrela vermelha. O foguete poderia sumir antes das fitas percorrerem a lista toda.
Voltando, então, aos meus sonhos, que começaram no dia em que você passou a me esperar do lado de fora da minha classe. O dia em que eu soube que você gostava de mim.
Hannah tirou a blusa e deixou Justin pôr as mãos dentro do sutiã dela. Foi isso. Foi o que eu ouvi dizer que aconteceu naquela noite.
Mas espera aí. Por que ela faria isso no meio de um parque?
O sonho começava comigo no topo do foguete, segurando a roda da direção.
Continuava sendo um foguete de playground, não um de verdade, mas toda vez que eu virava a direção para a esquerda as árvores erguiam suas raízes e se desviavam para a esquerda. Quando eu virava para a direita, elas se desviavam para esse lado.
Aí, eu ouvia sua voz chamando lá do chão:
"Hannah! Hannah! Pare de brincar com as árvores e venha me ver!"
Por isso, eu largava a direção e atravessava o buraco na plataforma superior.
Mas, ao alcançar a plataforma seguinte, meus pés tinham crescido tanto que não passavam pelo buraco seguinte.
Pés grandes? Sério? Não sou chegado em análise de sonhos, mas talvez ela estivesse imaginando se Justin tinha um grande.
Eu enfiava a cabeça entre as barras e gritava:
"Meus pés estão grandes demais! Você ainda quer que eu desça até aí?"
"Adoro pés grandes", você gritava de volta. "Desça pelo escorregador e venha me ver. Vou pegar você."
Então, eu me sentava no escorregador e me impulsionava para baixo. Mas a resistência do vento aos meus pés me fazia descer bem devagar. Durante o tempo que levava para chegar à parte de baixo do escorregador, notei que seus pés eram extremamente pequenos. Quase inexistentes. Eu sabia!
Você vinha andando até aponta do escorregador com os braços estendidos, pronto para me pegar. E quer saber de uma coisa? Quando eu pulava do escorregador, meus pés imensos não pisavam em cima dos seus pés pequenos.
"Está vendo? Nós fomos feitos um para o outro", você dizia. Aí, você se curvava para me beijar. Seus lábios iam chegando mais perto... mais perto ainda... e... eu acordava.
Todas as noites, durante uma semana, eu acordava exatamente no mesmo ponto de estar prestes a ser beijada. Mas, agora, Justin, eu ia finalmente me encontrar com você. Naquele parque. Na parte de baixo daquele escorregador.
E, caramba, você ia me beijar, gostando ou não.
Hannah, se você beijava nessa época como me beijou na festa, pode crer que ele gostou.
Eu lhe falei para me encontrar ali em quinze minutos. É claro que eu só disse isso para ter certeza que chegaria lá antes de você. Quando você se aproximasse, eu queria estar dentro daquele foguete e bem lá em cima, como nos meus sonhos. E foi assim que aconteceu... sem as árvores dançantes e os pés esquisitos.
Do lugar onde eu estava, no topo do foguete, vi você entrar pelo outro lado do parque. Você conferia seu relógio a cada dois ou três passos e veio andando até o escorregador, olhando para todos os lados, menos para cima. Por isso, girei a direção o mais forte que pude, para fazê-la chacoalhar com barulho. Você deu um passo para trás, olhou para cima e me chamou. Mas, não se preocupe, mesmo querendo realizar o meu sonho, eu não tinha nenhuma expectativa de que você soubesse todas as falas do roteiro e me dissesse para deixar de brincar com as árvores e descer dali.
"Já vou descer", eu avisei.
Mas você falou para eu ficar parada. Você ia subir até onde eu estava.
Por isso, respondi gritando:
"Não! Deixa eu descer pelo escorregador."
Ai, você repetiu aquelas palavras mágicas, saídas de um sonho:
"Vou pegar você!"
Definitivamente ganha do meu primeiro beijo. Na sétima série, Andréa Williams, atrás do ginásio de esportes, depois da aula. Ela veio até a minha mesa, na hora do almoço, cochichou a proposta no meu ouvido e fiquei excitado o resto do dia.
Quando o beijo acabou, três segundos depois de Andréa ter passado brilho sabor morango na boca, ela se virou e saiu correndo. Espiei em volta do ginásio e vi duas amigas dela lhe estenderem duas notas de cinco dólares. Não consegui acreditar! Meus lábios eram uma aposta de dez dólares.
Isso era bom ou ruim? Provavelmente ruim, concluí.
Mas eu adoro brilho sabor morango desde aquele dia.
Não pude deixar de sorrir enquanto descia a es cada da plataforma superior.
Sentei no escorregador com o coração disparando. Era assim que tinha de ser.
Todas as minhas amigas, no lugar onde eu morava, haviam dado o primeiro beijo no ensino fundamental. O meu estava me esperando no final de um escorregador, exatamente como eu queria. Tudo o que eu precisava fazer era me impulsionar para baixo.
Foi o que fiz.
Sei que não aconteceu realmente assim, mas, quando me recordo, tudo se passou em câmera lenta. O impulso. O escorregão. Meu cabelo voando para trás. Você abrindo os braços para me pegar. Eu estendendo os meus, para você conseguir me erguer.
Então, quando você decidiu me beijar, Justin? Foi durante sua caminhada até lá? Ou simplesmente aconteceu quando eu escorreguei nos seus braços?
Certo, quem quer saber qual foi a primeiríssima coisa que eu pensei durante meu primeiríssimo beijo? Aí vai: alguém andou comendo cachorro-quente com chilly.
Boa, Justin.
Sinto muito. Não foi tão ruim assim, mas foi à primeira coisa que eu pensei.
Prefiro brilho sabor morango.
Eu estava tão ansiosa a respeito de que tipo de beijo seria — porque minhas amigas descreveram tantos tipos — e acabou sendo do tipo lindo. Você não enfiou a língua na minha garganta. Você não agarrou minha bunda. Nós simplesmente juntamos os lábios... e nos beijamos.
E foi isso.
Espere aí. Pare. Não volte a fita. Não precisa, porque você não perdeu nada.
Deixe eu mesma repetir. Isso... foi... tudo... o... que... aconteceu.
Por quê? Você ouviu algo diferente?
Um arrepio corre pela minha espinha.
Sim, eu ouvi. Todos nós ouvimos.
Pois bem, você está certo. Aconteceu mesmo alguma coisa, Justin agarrou minha mão, andamos até os balanços e... balançamos. Aí, ele me beijou de novo da mesmíssima maneira.
E aí? E aí, Hannah? O que aconteceu?
Aí... nós fomos embora. Ele foi para um lado. Eu fui para o outro.
Oh. Sinto muito. Vocês queriam algo mais sexy, não queriam? Vocês queriam ouvir como meus dedinhos safadinhos começaram a brincar com o zíper dele.
Vocês queriam ouvir...
Me digam, o que vocês queriam ouvir? Porque eu ouvi tantas histórias que não sei qual é a mais famosa. Mas sei qual é a menos.
A verdade.
Agora, a verdade é a que vocês não vão esquecer.
Ainda posso ver Justin numa rodinha com os amigos na escola. Lembro de Hannah passar e o grupo inteiro parar de conversar. Eles desviaram o olhar. E quando ela se foi, começaram a rir.
Mas por que eu lembro disso?
Porque eu quis falar com Hannah inúmeras vezes depois da festa de despedida da Kat, mas era tímido demais. Medroso demais. Observando Justin e seus amigos aquele dia, fiquei com a impressão de que havia em Hannah muito mais do que eu sabia.
Aí, tempos depois, ouvi que ela havia sido apalpada no escorregador em forma de foguete. E ela era tão nova na escola que os boatos ofuscaram todo o resto que eu sabia a seu respeito. Hannah estava além do meu alcance, deduzi.
Experiente demais para pensar em mim.
Então, obrigada, Justin. Sinceramente. Meu primeiro beijo foi maravilhoso. E, durante o mês e pouco em que ficamos, e em todos os lugares que nós fomos, os beijos foram maravilhosos. Você foi maravilhoso.
Mas aí você começou a se exibir.
Uma semana se passou e não ouvi nada. Mas, no final, como sempre acontece, os boatos chegaram até os meus ouvidos. E todo mundo sabe que é impossível desmentir um boato.
Eu sei. Sei o que você está pensando. Enquanto eu contava a história, estava pensando a mesma coisa. Um beijo? Um boato baseado num beijo é responsável por você fazer isso consigo mesma?
Não. Um boato baseado num beijo arruinou uma lembrança que eu esperava que fosse especial. Um boato baseado num beijo criou uma reputação. As outras pessoas acreditaram nela e reagiram de acordo com ela. E, às vezes, um boato baseado num beijo tem um efeito bola de neve.
Um boato baseado num beijo é só o começo.
Vire a fita para ouvir mais.
Estico a mão até o toca-fitas, pronto para apertar o stop.
E Justin, querido, continue com a gente. Você não vai acreditar quando seu nome aparece de novo.
Mantenho o dedo sobre a tecla, escutando o zumbido suave nos falantes, o ruído esganiçado, quase inaudível, das engrenagens puxando a fita, esperando que a voz dela volte. Mas ela não volta. A história acabou.


 Quando chego no Tony, o Mustang está estacionado na frente da sua casa. O capô está aberto, preso ao suporte, e ele e seu pai, debruçados sobre o motor.
Tony segura uma lanterninha enquanto seu pai aperta alguma coisa lá dentro, bem no fundo, com uma chave inglesa.
— Quebrou ou vocês estão só se divertindo? — pergunto. Tony dá uma olhada por cima do ombro e, quando me vê, deixa a lanterna cair no motor.
— Droga.
O pai dele endireita as costas e limpa as mãos oleosas na camiseta cheia de graxa.
— Está brincando? Isso aqui é sempre diversão — olha para Tony e pisca. — Fica ainda mais divertido quando a coisa é séria.
Franzindo o rosto, Tony tenta alcançar a lanterna.
— Pai, você lembra do Clay?
— Mas é claro que sim! Que bom vê-lo de novo.
Ele não estende a mão para me cumprimentar. Com aquela quantidade de graxa na sua camiseta, não me ofendo. Mas ele está fingindo. Não se lembra de mim.
— Ah, lembro de você, sim. Jantou conosco uma vez, certo? Caprichou no "por favor" e no "obrigado".
Eu sorrio.
— Depois que você foi embora, a mãe do Tony ficou em cima da gente uma semana, falando para sermos mais educados.
O que eu posso fazer? Pais e mães gostam de mim.
— É, é ele mesmo.
Tony pega uma flanela para limpar as mãos.
— E aí, o que tá pegando, Clay?
Repito suas palavras dentro da minha cabeça. O que tá pegando? O que tá pegando? Ah, já que você perguntou, recebi um pacote de fitas cassete pelo correio hoje, de uma garota que se matou. Parece que eu tive alguma coisa a ver com isso. Não tenho certeza que coisa é essa, por isso fiquei imaginando se poderia pegar seu walkman emprestado para descobrir.
— Nada demais — respondo.
O pai de Tony pergunta se eu me importaria de entrar no carro e dar a partida para eles.
— A chave está no contato.
Jogo a mochila no banco do passageiro e escorrego para trás do volante.
— Espera. Espera! — berra o pai de Tony.
— Tony, ilumina esse lado aqui.
Tony está em pé ao lado do carro. Ele me observa. Quando nossos olhos se cruzam, ficam grudados e não consigo desviar. Será que ele sabe? Será que ele sabe das fitas?
— Tony, a luz — repete o pai dele.
Tony corta nossa comunicação e curva-se com a lanterna. No espaço entre o painel e o capo, seus olhos fixam-se alternadamente em mim e no motor.
E se ele souber das fitas? E se a história dele estiver bem antes da minha? Será que foi ele quem as enviou para mim?
Estou pirando. Talvez ele não saiba. Talvez eu apenas esteja parecendo culpado e ele esteja captando isso.
Enquanto espero a deixa para dar a partida, dou uma olhada no interior do carro. Atrás do banco do passageiro, no chão, está o walkman. Está largado ali.
O fio dos fones de ouvido bem apertado em torno do aparelho. Mas qual é a minha desculpa? Para que eu preciso desse walkman?
— Tony, aqui, pegue a chave inglesa e deixe eu segurar a lanterna — diz o pai dele. — Você está tremendo demais.
Eles trocam a lanterna pela chave inglesa e, nesse momento, agarro o walkman. Assim mesmo. Sem pensar. O bolso do meio da mochila está aberto, então eu enfio o aparelho lá dentro e fecho o zíper.
— Certo, Clay — avisa o pai de Tony. — Pode ligar.
Eu viro a chave no contato e o motor dá partida no ato. Pelo vão acima do painel, observo o sorriso do pai de Tony. Seja lá o que ele fez, está satisfeito.
— Um pequeno ajuste fino para fazê-lo cantar — ele diz, em cima do motor. — Pode desligar agora, Clay.
Tony abaixa o capo, que se fecha com um estalo.
— Vejo você lá dentro, pai.
O pai de Tony faz um sinal positivo com a cabeça, ergue uma caixa metálica de ferramentas do chão, junta alguns trapos cheios de graxa e se dirige à garagem.
Puxo a mochila para cima do ombro e saio do carro.
— Valeu. Se você não tivesse aparecido, provavelmente a gente teria passado a noite inteira aqui fora.
Escorrego o braço para dentro da outra alça e ajeito a mochila.
— Eu precisava sair um pouco. Minha mãe estava me enchendo o saco.
Tony olha para a garagem.
— Nem me fale. Eu precisando começar a lição de casa e meu pai querendo mexer mais um pouco embaixo do capô.
A lâmpada do poste acima de nossa cabeça acende com uma faísca.
— Então, Clay, por que você veio até aqui?
Sinto o peso do walkman na mochila
— Estava só de passagem e vi você aqui fora. Pensei era dar um oi.
Tony está me encarando fixamente, por isso olho para o carro.
— Estou indo para o Rosie's, ver o que está rolando — ele comenta. — Quer uma carona?
— Valeu, mas estou só caminhando um pouco.
Ele enfia as mãos no bolso.
— Aonde você vai?
Meu Deus, espero que ele não esteja na lista. Mas e se ele estiver? E se ele já ouviu as fitas e sabe exatamente o que está se passando na minha cabeça? E se ele souber exatamente aonde estou indo? Ou, pior, se ele ainda não tiver recebido as fitas? E se elas forem enviadas mais tarde para ele?
Se for isso, ele se lembrará desse momento. Lembrará das minhas evasivas, da minha recusa em dar uma dica ou um aviso.
— Para lugar nenhum — disfarço. Coloco as mãos no bolso também.
— Então, falou, até amanhã — encerro a conversa.
Ele não diz nada. Só me observa partir. A qualquer momento espero que ele grite: "Ei, cara! Cadê o meu walkman?" Mas ele não faz isso. Escapo são e salvo.
Viro à direita na primeira esquina e continuo andando. Ouço o barulho da partida do motor e o som do cascalho quando as rodas do Mustang começam a girar. Tony pisa no acelerador, cruza a rua atrás de mim e segue seu rumo.
Baixo a mochila dos ombros e a coloco no chão. Puxo o walkman para fora. Desenrolo o fio, coloco a haste de plástico amarelo sobre a cabeça e enfio os fones na orelha. Dentro da mochila, estão as primeiras quatro fitas, uma ou duas a mais do que eu provavelmente terei tempo para escutar esta noite. O resto eu deixei em casa.


Abro o zíper do bolso menor e tiro a primeira fita. Escorrego -a para dentro do aparelho, com o lado B virado para fora, e fecho a portinha de plástico do toca-fitas.

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