Capítulo 6

Esta noite, durmo no sofá de veludilho sem ao menos trocar de roupa. Acordo na manhã de domingo com Grapette e Repete dormindo no meu peito e na minha cara. Ou eu tomei o lugar deles no sofá ou eles decidiram que eu sou o lugar deles. Sento-me a tempo de ver o último colega de república de Meg, que tinha passado o fim de semana inteiro desaparecido, largar uma tigela de cereal na pia e sumir pela porta dos fundos.
— Tchau, Harry — despede-se Alice.
Então esse é Harry. Segundo Meg, ele ficava a maior parte do tempo no próprio quarto, com seus vários computadores e potes de kimchi.
Alice vai à cozinha e volta com uma xícara de café para mim. Ela anuncia que é orgânico, respeita as regras do comércio justo e é cultivado à sombra no Malaui. Eu assinto, como se meu café precisasse ser algo mais do que quente e cafeinado.
Fico sentada no sofá, observando os gatos baterem de brincadeira um na cara do outro. Uma das orelhas de Repete fica presa virada pelo avesso. Eu a endireito e ele solta um miado. É o som mais desamparado do mundo e, sinto muito, mas não há a menor possibilidade de eu deixar esses dois bichinhos em um abrigo, mesmo que não seja do tipo que mata os animais.
Quando termino o café, saio com o meu telefone para a varanda, onde alguém organizou um monte de garrafas de cerveja vazias na posição de pinos de boliche. Ligo para Tricia. São só dez e meia, mas, por algum milagre, ela atende.
— Como está a cidade grande?
— Grande — respondo. — Olha, o que você acha de eu levar para casa dois gatinhos?
— O que você acha de arranjar outro lugar para morar?
— Seria temporário. Até eu encontrar um lar para eles.
— Nem pensar, Cody. Já criei você por dezoito anos. Não vou acolher mais nenhuma criatura desamparada.
Tenho vários motivos para me sentir ofendida; um dos principais é a sugestão de que sou uma criatura indefesa paparicada por anos e anos. Eu poderia dizer que me criei sozinha, mas estaria sendo injusta com os Garcias. Quando tive uma infecção na garganta, foi Sue quem notou o pus nas minhas amígdalas e me levou ao pediatra para tomar antibiótico. Quando fiquei menstruada pela primeira vez, foi Sue quem comprou absorventes. Tricia simplesmente indicou os tampões no armário de remédios “para quando chegar a hora”, sem parar para pensar como poderia ser aterrorizante para uma menina de 12 anos enfiar qualquer coisa extragrande, superabsorvente dentro de si. Quanto às cinquenta horas de aulas práticas que eu precisava para tirar a carteira de motorista, Tricia se ocupou de três delas. Joe cuidou das 47 restantes, passando inúmeras tardes de domingo no carro comigo e com Meg.
— Devo ter que ficar aqui mais alguns dias. Pode me cobrir na Srta. Mason segunda-feira? É uma chance de ganhar 40 dólares.
— Claro.
Tricia não pensa duas vezes ao ouvir falar em dinheiro. Não me pergunta por que vou demorar mais nem quando voltarei para casa.
Em seguida, telefono para os Garcias. Aí é um pouco mais delicado, pois, se eu mencionar os gatinhos, eles se oferecerão para adotá-los, por mais que vá ser um desastre, a julgar pela maneira como Samson se comporta com os gatos. Digo a Sue que vou precisar de mais uns dois dias para acertar algumas pendências que Meg deixou. Ela parece aliviada e não faz mais perguntas. Apenas me fala para levar o tempo que achar necessário. Quando estou prestes a desligar, ela continua:
— E, Cody...
Eu odeio esses E, Cody. São como uma pistola sendo engatilhada. Como se eles estivessem prestes a dizer que sabem de tudo.
— Sim?
Longo silêncio do outro lado da linha. Meu coração começa a disparar.
— Obrigada.

° ° °

Volto a entrar e pergunto a Alice sobre a melhor maneira de encontrar um lar para os gatinhos.
Um bom lar.
— Você poderia publicar um anúncio, mas já ouvi falar que às vezes os animais vão parar em laboratórios de pesquisa.
— Não está ajudando muito.
— Bem, podemos colar uns cartazes. Todo mundo gosta de fotos de gatinhos.
Eu suspiro.
— Está bem. Como acha que devemos fazer isso?
— O jeito mais fácil é tirar uma foto dos bichanos, mandar por e-mail para você mesma, acrescentar um texto, imprimir e... Talvez seja mais simples usar o notebook da Meg; ele já tem uma câmera.
O computador de 800 dólares que os pais lhe deram quando ela entrou para a faculdade. Eles ainda estão pagando as parcelas no cartão.
Subo até o quarto e o encontro em uma das caixas. Ligo o notebook. Ele está protegido por senha, mas digito Runtmeyer e a área de trabalho aparece. Levo o computador para o andar de baixo enquanto Alice reúne os dois gatos para fazer uma pose, o que é mais difícil do que você imagina. Por fim, consigo tirar uma foto. Alice diagrama o cartaz em questão de instantes e fazemos uma cópia de teste com a impressora de Meg.
Estou prestes a desligar o computador, mas então me detenho. O programa de e-mails dela está bem ali, na barra de ferramentas. Sem pensar no que estou fazendo, clico no ícone. No mesmo instante, ele começa a baixar um monte de novos e-mails: lixo, em sua maioria, spams de anônimos que não sabem que ela está morta, embora haja também uma ou outra mensagem no estilo Meg, sentimos sua falta, bem como uma dizendo que ela vai apodrecer no inferno porque suicídio é um pecado mortal. Apago essa última.
Fico curiosa para saber qual foi o último e-mail enviado por Meg. Para quem foi? Terá sido o bilhete de suicídio? Enquanto clico na pasta de mensagens enviadas, olho ao meu redor como se alguém estivesse me observando. Não há ninguém, é claro.
Não é o bilhete de suicídio. Ela o escreveu dois dias antes de morrer e, como sabemos agora, programou-o para ser enviado automaticamente um dia após sua morte. Depois, ela ainda escreveu algumas mensagens, inclusive uma para a biblioteca contestando uma multa por atraso na devolução de um livro. Ela sabia que iria morrer e estava preocupada com multas de biblioteca?
Como uma pessoa pode fazer isso? Como pode tomar uma decisão dessas, escrever um e-mail desses e seguir em frente mesmo assim? Se você consegue fazer isso, não pode continuar seguindo em frente?
Confiro mais alguns dos seus e-mails enviados. Tem um da semana em que ela morreu, endereçado a Scottie. Diz apenas: Ei, Runtmeyer, eu te amo. Para sempre.
Isso foi o adeus dela? Será que ela enviou um adeus para mim que eu não vi? Continuo descendo a barra de rolagem e percebo uma coisa estranha: tem um monte de mensagens enviadas na semana anterior à morte dela, então uma grande lacuna de seis semanas sem nada, e depois os e-mails voltam a aparecer em janeiro.
Estou prestes a fechar o programa e desligar o computador quando vejo algo que Meg enviou para um tal bigbadben@podmail.com poucos dias antes de morrer. Hesito por alguns instantes. Então abro a mensagem.
Não precisa mais se preocupar comigo.
É um tipo diferente de adeus. Apesar da carinha feliz, consigo sentir a mágoa, a rejeição e a derrota, coisas que jamais associei a Meg Garcia.
Acesso a caixa de entrada dela e faço uma busca por e-mails de bigbadben. Eles remontam ao outono; os da primeira leva são quase todos curtos e espirituosos, mensagens de uma linha só em tom de brincadeira. Não consigo ver as respostas aqui, só a parte dele da conversa, porque os e-mails do Ben cortam o que ela havia escrito antes de cada resposta. Os e-mails mais antigos são de depois que Meg o viu tocar pela primeira vez, um monte de mensagens do tipo Obrigado por assistir ao meu showObrigado por ser tão gentil mesmo nossa banda sendo tão ruim — falsa modéstia que até uma criança de 6 anos perceberia. Tem também algumas divulgações de próximos shows.
Então o tom fica mais pessoal e, logo, eles parecem flertar — em uma das mensagens, ele a chama de Mad Meg; em outra, fica falando sobre algo que suponho serem as botas de couro de cobra laranja que ela comprou de segunda mão e não tirava do pé. Em duas delas, ele a chama de louca porque todo mundo sabe que Keith Moon é disparado o melhor baterista do mundo.
Tem algumas outras com esse tipo de conversa sobre bandas de rock que Meg poderia passar dias usando como assunto para flertar.
Mas então o tom muda bruscamente. Tranquilo. Ainda somos amigos, escreve ele.
Consigo sentir o desconforto mesmo agora, a quatro meses de distância e com tantas partes faltando. Vasculho os itens enviados para ver o que Meg escreveu para ele. Procuro nas mensagens mais antigas, mas não consigo encontrar o que motivou os e-mails mais recentes, porque há outra lacuna igual nos e-mails enviados. Os meses de janeiro e fevereiro quase inteiros estão apagados. Estranho.
Volto aos e-mails de Ben para ela. Um deles diz: Não se preocupe. Outro pede que Meg não ligue para ele tão tarde da noite. Outro afirma, de forma já nem tão tranquilizadora, que, sim, eles ainda eram amigos. Em outra mensagem, Ben pergunta se Meg pegou a sua camisa do Mudhoney, porque era do pai dele. E então leio um dos últimos e-mails que ele enviou. Uma frase lacônica, tão cruel que me faz odiar Ben McCallister como se eu tivesse gelo nas veias:
Meg, você precisa me deixar em paz.
Pois é, ela deixou você em paz.
Ontem, encontrei uma camisa grande, preta, branca e vermelha, dobrada com cuidado. Não a reconheci, logo a coloquei na pilha de roupas para doar. Pego-a agora: está escrito MUDHONEY. A preciosa camisa dele. Nem com isso ele quis que Meg ficasse.
Volto para o notebook e, com fúria nos dedos, escrevo uma nova mensagem a bigbadben pela conta de Meg, com o seguinte Assunto: Renascida dos mortos.
É da sua preciosa camisa que estou falando, escrevo. Há um limite para milagres e ressurreições.
Não assino a mensagem e, antes que possa pensar melhor, clico ENVIAR. Demoro apenas trinta segundos para me arrepender e lembro por que odeio e-mails. Quando você escreve uma carta, digamos, para o seu pai, pode encher páginas e páginas com todas as coisas que acha superimportantes, porque não sabe onde ele mora. Mesmo que soubesse, ainda precisaria gastar tempo procurando um envelope e um selo e, depois disso tudo, você acaba rasgando a carta. Mas então, um belo dia, você descobre o e-mail dele e está perto de um computador com acesso à internet. Como não tem nenhum impedimento, escreve o que está sentindo e clica para enviar antes de ter uma chance de se convencer do contrário. E daí você espera, e espera, e espera e não recebe resposta alguma. E vê que todas aquelas coisas que achava tão importante que fossem ditas, na verdade, não eram. Simplesmente não valia a pena dizê-las.

° ° °

Alice e eu cobrimos os arredores da faculdade em Tacoma com cartazes de gatinhos para doação. Ela tem a brilhante ideia de colocá-los em volta de uma loja de comidas naturais metida a besta, onde os ricos vão fazer compras. Pegamos o ônibus e, no caminho, ela me diz que o lugar não chega a ser uma Whole Foods, mas que eles devem receber uma loja dessas em breve. Quando comento “Que maneiro”, Alice responde “Não é?”, sem perceber o sarcasmo, então eu olho pela janela, torcendo para ela calar a boca.
A viagem é em vão, porque o gerente da loja não nos deixa afixar os cartazes do lado de fora, logo nós os entregamos para os clientes endinheirados, com suas ecobags. Todos, sem exceção, nos olham como se estivéssemos oferecendo amostras grátis de crack.
Voltamos mais de cinco horas e até a saltitante Alice está desanimada. Estou furiosa e frustrada. Não consigo acreditar que seja tão difícil arranjar um lar para dois gatinhos e tudo me parece uma espécie de brincadeira cruel, em que Meg é quem ri por último.
A casa cheira a comida, um aroma estranho e desagradável de temperos que não combinam bem: curry, alecrim, alho de mais. Tree está de volta, tomando uma cerveja, sentada no sofá.
— Achei que você tivesse ido embora — diz ela com frieza.
Alice afixa um dos cartazes no quadro de avisos junto à porta, ao lado de um outro grande da vigília de amanhã do grupo de Apoio à Vida. Ela explica que estou tentando encontrar um lar para Grapette e Repete.
Tree faz uma careta.
— O que foi, você tem alguma coisa contra gatinhos? — pergunto.
Ela franze o nariz.
— É que esses nomes, Grapette e Repete, são muito gays.
— Eu sou bissexual e não gosto desse uso pejorativo da palavra gay — retruca Alice. Ela tenta soar irritada, mas, sabe-se lá como, acaba parecendo alegrinha.
— Bem, desculpe. Sei que eles são os gatos da garota morta, mas os nomes ainda são gays.
Tree parece agora menos uma hippie e mais um dos caipiras da nossa cidade. Isso me faz odiá-la menos e mais ao mesmo tempo.
— E quais nomes você sugere?
Sem hesitar, ela diz:
— Tico e Teco. É como os chamo na minha cabeça.
— E você acha Grapette e Repete ruins? — Richard Locão aparece com um avental respingado e uma colher de pau. — Acho que deveríamos chamá-los de Lenny e Steve.
— Esses não são nomes de gatos — intervém Alice.
— Por que não? — insiste Richard, segurando a colher que traz o cheiro estranho da cozinha. — Quer provar?
— O que é? — pergunta Tree.
— Mexido de tudo o que tem na geladeira.
— Por que não acrescenta os gatos? Aí não vamos mais ter que encontrar um lugar para eles morarem.
— Achei que você fosse vegetariana — diz Alice, exasperada.
Richard me convida para comer sua gororoba. Pelo cheiro, é como se os temperos tivessem entrado numa briga em que todos saíram perdendo. Mas esse não é o motivo que me faz recusar. Estou desacostumada a ter companhia. Não sei direito o que aconteceu. Nunca tive grandes amizades, mas costumava ter amigos: da escola, da nossa cidade. Costumava estar o tempo todo na casa dos Garcias. Esse costumava parece ser um passado muito distante.
Deixo os colegas de república fazerem sua refeição e vou à cozinha beber alguma coisa. Tinha comprado um litro de Dr. Pepper mais cedo e guardado na geladeira, mas Richard, em sua ânsia de cozinhar, mudou tudo de lugar, então tenho que desencavá-lo. Lá no fundo, encontro duas latas fechadas de RC Cola. Sinto um nó na garganta, pois a única pessoa que conheci na vida que bebia isso era Meg. Encho um copo com gelo e RC. Depois que eu sair daqui, não quero ter deixado a menor parte dela que seja para trás.
Vou para a varanda com a minha bebida. Mas, quando vejo que lá não está vazio, paro tão de repente que acabo derramando refrigerante na blusa.
Ele está fumando um cigarro, a brasa ardendo ameaçadoramente sob a luz cinzenta e fraca do crepúsculo.
Não sei o que me surpreende mais: que o meu e-mail tenha tido um verdadeiro impacto ou que ele pareça disposto a me matar.
Não lhe dou nenhuma chance. Largo a bebida no parapeito da varanda, dou meia-volta e vou para o andar de cima, tentando me deslocar devagar, agir com calma. Ele veio pela camisa, então é isso que vou buscar. Vou jogá-la na cara dele e mandá-lo sumir daqui.
Ouço o som de cascalho sendo esmagado e os passos dele subindo a escada. Não sei o que fazer, pois, se gritar por ajuda, vou parecer fraca. Mas eu vi o olhar dele. Parece que ele não só recebeu meu e-mail, como meu ódio também, e agora o ódio está voltando para mim.

° ° °

Entro no quarto de Meg. A camisa de Ben está em cima de uma das pilhas que deixei ali.
Ele me seguiu até lá e está parado diante da porta. Atiro a camisa; não quero nenhuma parte dele no mesmo espaço que eu. A camisa bate nele e cai no chão.
— Que porra é essa? — pergunta Ben.
— Que foi? Você não queria sua camisa? Aí está ela.
— Que tipo de pessoa faz uma coisa dessas?
— Do que você está falando? Você disse que queria a sua camisa...
— Ah, corta essa, Cody — interrompe ele. É perturbador ouvi-lo dizer meu nome. Não Vaqueira Cody com aquele grunhido sedutor idiota. Mas simplesmente meu nome, sem rodeios. — Você me enviou um e-mail como se fosse uma garota morta. Foi só por crueldade? Ou você também é meio maluca?
— Você queria sua camisa de volta — repito, mas agora estou assustada, então não pareço tão convencida.
Ele me fuzila com o olhar. Sob a luz pálida do quarto de Meg, os olhos dele assumem uma cor bem diferente. Então me lembro do último e-mail de Meg. Não precisa mais se preocupar comigo. E a raiva volta.
— Você não podia deixar que ela ficasse com uma lembrança? Talvez devesse fazer isso, levando em conta o número de garotas que deve comer. Dar uma camisa de brinde. Mas pedir de volta? Isso é falta de educação.
— É óbvio que você não sabe do que está falando.
— Então esclareça para mim.
Há um quê de desespero na minha voz. Porque ele tem razão. Não sei do que estou falando. Talvez se tivesse sabido, se tivesse recebido mais pistas ao longo dos últimos meses, não estaríamos parados aqui.
Ele me encara como se eu fosse algo podre. E não consigo acreditar que estou diante do mesmo galanteador metido a sedutor da noite passada.
— O que aconteceu? Você se cansou dela? É isso que acostuma acontecer entre você e as garotas? É muita falta de imaginação sua, porque, se tivesse se dado o trabalho de conhecê-la, você nunca teria se cansado. Ela era Meg Garcia, e quem é você, Ben McCallister, para dizer a ela para deixar você em paz?
Minha voz ameaçou falhar, mas consegui resistir. Vou ter tempo para perder o controle depois. Sempre há tempo para perder o controle depois.
A expressão de Ben muda. Cristais de gelo se formam no seu rosto.
— Como você sabe o que escrevi para ela?
— Eu vi seu e-mail: Meg, você precisa me deixar em paz.
A mensagem me soou cruel na hora. Mas agora, vindo de mim, soa apenas patética.
O rosto dele é puro ódio.
— Não sei o que é mais repugnante: ler os e-mails de uma garota morta ou mandar um e-mail no lugar dela.
— Você é que é repugnante — rebato, parecendo uma criança.
Ele me encara, balançando a cabeça. E então vai embora, sua preciosa camisa apenas um trapo esquecido no chão.

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