Capítulo 3



Já escrevi uns dez elogios fúnebres para Meg, imaginando todas as coisas que poderia dizer a respeito dela. Como quando nos conhecemos na primeira semana do jardim de infância e ela fez um desenho de nós duas, com nossos nomes e mais algumas palavras que eu não entendi, pois, ao contrário de Meg, ainda não sabia ler nem escrever. “Está escrito ‘melhores amigas’”, explicou ela. E, como todas as coisas que Meg queria ou previa, isso se tornou realidade. Poderia dizer que ainda tenho esse desenho. Que o guardo em uma caixinha de metal que contém todas as minhas coisas mais importantes e que ele está vincado por conta da idade e de tanto ser visto.
Ou poderia falar que Meg sabia coisas sobre as pessoas que elas próprias talvez não soubessem. Como, por exemplo, a quantidade exata de espirros que você dá de uma só vez; parece que existe um padrão para cada um. O meu era três. Scottie e Sue, quatro. Joe, dois. O de Meg era cinco. Ela também se lembrava do que você estava vestindo em cada ocasião especial, em cada Halloween. Era tipo o arquivo da minha história. E a criadora dela também, já que passei quase todos os meus dias de Halloween com Meg, geralmente vestindo alguma fantasia que ela havia criado.
Ou talvez pudesse falar da obsessão de Meg por canções sobre vaga-lumes. Começou no nono ano, quando ela comprou um single em vinil de uma banda chamada Heavens to Betsy. Ela me arrastou para o seu quarto e me colocou para ouvir o disco riscado naquela vitrola antiga que comprara por 1 dólar em um bazar de igreja e consertara sozinha, com a ajuda de alguns vídeos instrutivos do YouTube. And you will never know how it feels to light up the sky. You will never know how it feels to be a firefly. Nós nunca saberemos qual é a sensação de iluminar o céu como um vaga-lume... A voz de Corin Tucker era ao mesmo tempo forte e vulnerável, de um jeito que parecia quase sobre-humano.
Depois de descobrir a Heavens to Betsy, Meg tomou para si a missão de encontrar todas as canções boas sobre vaga-lumes. No melhor estilo Meg, em poucas semanas ela já havia reunido uma lista gigantesca. “Você por acaso já viu um vaga-lume?”, perguntei.
Eu sabia que não. Como eu, Meg nunca tinha ido para nenhum lugar a leste das Montanhas Rochosas. “Ainda tenho tempo”, afirmou ela, abrindo os braços, como se quisesse demonstrar quanta vida havia lá fora, à sua espera.

° ° °

Joe e Sue pediram que eu falasse na primeira cerimônia, a maior de todas, que deveria ter sido realizada na igreja católica que os Garcias frequentavam havia anos. Porém, o padre Grady, embora fosse amigo da família, era um homem que seguia as regras. Ele disse ao pai e à mãe de Meg que sua filha havia cometido um pecado mortal, portanto sua alma não seria aceita no céu e que seu corpo teria que ir para um cemitério que não fosse católico.
A última parte era ainda um pouco mais complicada. A polícia demorou um bom tempo para liberar o corpo. Aparentemente, o veneno que ela havia usado era raro. Ninguém que conhecesse Meg se surpreendeu com esse dado. Ela nunca usava roupas de marca, sempre escutava bandas das quais ninguém tinha ouvido falar. É claro que encontrara algum veneno obscuro para ingerir.
O caixão sobre o qual todos choraram naquela primeira cerimônia estava vazio e não houve enterro. Entreouvi Xavier, o tio de Meg, dizer à namorada que talvez fosse melhor que nunca houvesse. Ninguém sabia o que escrever na lápide. “Tudo acaba parecendo uma censura”, ponderou ele.
Tentei escrever um elogio fúnebre para aquela missa. Juro. Cheguei a pegar o CD de canções sobre vaga-lumes que Meg gravara para me inspirar. A terceira era “Fireflies”, dos Bishop Allen. Acho que nunca tinha prestado atenção na letra, porque, quando a ouvi de verdade, foi como se tivesse recebido um tapa do além: It says you can still forgive her. And she will forgive you back.
Mas não sei se ainda posso perdoá-la.
E não sei se ela me perdoou também.
Falei para Joe e Sue que sentia muito, mas que não podia fazer um elogio fúnebre, pois não conseguia pensar em nada para dizer.
Foi a primeira vez que menti para eles.

° ° °

A cerimônia de hoje é no Rotary Club, então não é um evento religioso oficial, embora o orador seja uma espécie de reverendo. Não sei de onde eles saem, todos esses oradores que nem conheciam Meg direito. Ao final, Sue me convida para outra recepção em sua casa.
Eu costumava passar tanto tempo na casa de Meg que conseguia adivinhar o humor de Sue pelo cheiro que sentia ao atravessar a porta. Manteiga significava que ela estava fazendo bolo, logo estava melancólica e precisava se animar. Um cheiro picante significava que ela estava feliz, preparando comida mexicana para Joe, embora fizesse mal ao estômago dela. Se fossem pipocas, ela estaria na cama, com as luzes apagadas, sem cozinhar nada, e Meg e Scottie tinham que se virar sozinhos, portanto haveria um rodízio de tira-gostos de micro-ondas.
Nesses dias, enquanto subia para cuidar de Sue, Joe comentava, em tom de brincadeira, que nós, crianças, tínhamos sorte de poder comer aquele monte de porcarias. A gente fingia que concordava, mas, depois do segundo ou terceiro enroladinho de salsicha, normalmente minha vontade era de vomitar.
Conheço tão bem os Garcias que, quando telefonei para eles naquela manhã após receber o e-mail de Meg, eu sabia que, embora fossem onze da manhã de um sábado, Sue ainda estaria na cama, mas não dormindo. Ela dizia que nunca conseguiu reaprender a dormir até tarde depois que os filhos pararam de acordar cedo. E Joe já teria feito o café e aberto o jornal sobre a mesa da cozinha. Scottie estaria vendo desenhos animados. A rotina era uma das muitas coisas que eu adorava na casa de Meg. Era tão diferente da minha, onde o mais cedo que Tricia costumava acordar era ao meio-dia. Mas em certas ocasiões você poderia encontrá-la preparando café da manhã. Em outras, poderia nem estar em casa.
No entanto, agora existe outro tipo de rotina na casa dos Garcias, bem menos convidativa. Mesmo assim, quando Sue me convida para ir até lá, eu vou, por mais que preferisse recusar o convite.

° ° °

O grupo de carros parado em frente à casa é menor do que costumava ser nos primeiros dias, quando toda a cidade vinha fazer visitas de condolências com um pirex nas mãos. Era um pouco difícil de aturar todas aquelas travessas de comida acompanhadas de “sinto muito pela sua perda”, pois, em outras partes da cidade, a fofoca corria solta. “Não me surpreende. Aquela garota sempre foi muito maluca”, eu escutara sussurrarem no supermercado. Meg e eu sabíamos que algumas pessoas diziam coisas desse tipo a respeito dela — em nossa cidade, ela era como uma rosa brotando no deserto; confundia os outros —, mas, agora, esses comentários já não pareciam motivo de orgulho.
E Meg não era o único alvo. No bar de Tricia, eu ouvi duas moradoras da cidade soltarem farpas sobre Sue. “Eu saberia se minha filha estivesse pensando em se matar”, afirmou a mãe de Carrie Tarkington, que tinha ido para a cama com metade da escola. Eu estava prestes a perguntar se ela sabia disso, já que era tão onisciente. Mas então sua amiga acrescentou: “Sue? Você só pode estar de brincadeira! Aquela mulher parece que está no mundo da lua; e isso nos melhores dias.” E eu fiquei pasma com a crueldade delas. “Como vocês se sentiriam se tivessem acabado de perder uma filha, suas vacas?”, explodi. Tricia teve que me levar para casa. Depois da cerimônia de hoje, Tricia me deixa na casa dos Garcias, pois precisa trabalhar.
Eu entro sem bater. Joe e Sue me abraçam forte por um instante a mais do que seria confortável. Sei que minha presença deve servir um pouco de consolo para eles, mas, pelo olhar de Sue, dá para imaginar as perguntas que lhe passam pela cabeça, e sei que todas podem ser resumidas a uma só: Você sabia?
Não sei o que seria pior. Se eu tivesse sabido e não contado a eles. Ou a verdade, que é a seguinte: embora Meg fosse minha melhor amiga e eu tivesse lhe contado tudo o que havia para contar a meu respeito, supondo que ela tivesse feito o mesmo, eu não sabia. Não fazia a menor ideia.
Estou adiando esta decisão há muito tempo, ela escreveu em sua mensagem. Há muito tempo? Quanto? Semanas? Meses? Anos? Eu conhecia Meg desde o jardim de infância. Éramos melhores amigas, quase irmãs. Por quanto tempo ela adiou a decisão sem me contar? E o mais importante: por que ela não me contou?

* * *

Depois de ficarmos sentados por dez minutos em um silêncio triste e respeitoso, Scottie, o irmão de 10 anos de Meg, se aproxima de mim com o cachorro deles — ou melhor, só dele agora —, Samson, em uma coleira.
— Vamos passear? — pergunta ele, tanto para mim quanto para Samson.
Faço que sim com a cabeça e me levanto. Scottie parece ser o único que ainda guarda alguma semelhança com quem era antes, talvez por ser mais jovem — embora não seja tão novo assim e ele e Meg fossem muito próximos. Quando Sue tinha crises de humor e sumia, e Joe também desaparecia para cuidar dela, era Meg quem cuidava de Scottie.
Estamos no fim de abril, mas os pais dele não nos alertam sobre o mau tempo. O vento está forte e gelado. Andamos até o descampado em que todo mundo deixa os cães fazerem cocô, e Scottie solta Samson. Ele sai correndo, eufórico, feliz em sua ignorância canina.
— Como você está, Runtmeyer?
Eu me sinto falsa usando o seu velho apelido para implicar com ele, e já sei como Scottie está. Mas, sem Meg por perto para fazer o papel de mãe, e Sue e Joe perdidos em sua própria dor, alguém precisa pelo menos perguntar.
— Já cheguei à sexta fase no Fiend Finder. Posso jogar quanto quiser agora.
— Essa é uma vantagem — comento, tapando a boca logo em seguida.
Meu humor negro não é para ser compartilhado com o mundo. Mas Scottie solta uma risada amarga, velha demais para a sua idade.
— É. Sei.
Ele para e observa Samson cheirar o traseiro de um collie.
No caminho de volta para casa, Samson puxa a coleira porque sabe que depois do passeio vem a comida.
— Sabe o que eu não entendo? — pergunta Scottie.
Por achar que ainda estávamos falando de videogames, não estou preparada para o que ele diz em seguida:
— Por que ela não me mandou a mensagem também?
— Você tem e-mail? — indago, como se esse tivesse sido o motivo dela.
Ele revira os olhos.
— Tenho 10 anos, não 2. Tenho e-mail desde o terceiro ano. Meg me mandava coisas por e-mail o tempo todo.
— Ah. Bem, ela deve ter preferido poupar você.
Por um instante, os olhos de Scottie me pareceram tão fundos quanto os de Sue e Joe.
— É, ela me poupou muito.

° ° °

Quando retornamos, os convidados estão indo embora. Flagro Sue jogando um gratinado de atum no lixo. Ela me olha com uma expressão de culpa. Me aproximo para lhe dar um abraço de despedida, mas ela me detém.
— Você pode ficar? — pergunta com sua voz suave, tão diferente da inquietude da filha.
Meg, tão tagarela, podia levar qualquer um a fazer qualquer coisa a qualquer momento.
— Claro.
Ela gesticula para a sala. Joe está sentado no sofá, olhado para o nada; Samson está a seus pés, implorando pela tão esperada janta. Sob a luz mortiça do crepúsculo, olho para Joe. Meg havia puxado ao pai: pele morena e traços mexicanos. Ele parece ter envelhecido mil anos desde o mês passado.
— Cody — fala Joe. Uma palavra. E é suficiente para me fazer chorar.
— Oi, Joe.
— Sue quer conversar com você; nós dois queremos.
Sinto o coração disparar, pois temo que eles enfim me perguntem se eu sabia de alguma coisa. Tive que responder algumas perguntas rápidas à polícia quando tudo aconteceu, mas eram mais sobre como Meg poderia ter arranjado o veneno. Eu não sabia nada sobre isso, apenas que, se Meg quisesse alguma coisa, ela geralmente encontrava uma maneira de obtê-la.
Depois que Meg morreu, pesquisei na internet sobre todos os indícios de um suicídio iminente. Meg não me deu nenhuma de suas coisas preferidas. Ela não falava sobre se matar. Quer dizer, dizia coisas como “Se a Sra. Dobson passar mais um teste, vou dar um tiro na minha cabeça”, mas isso conta?
Sue senta-se ao lado de Joe no sofá puído. Eles se entreolham por uma fração de segundo, como se isso doesse demais. Então se viram para mim.
— O período da Cascades termina mês que vem.
A Cascades é a prestigiosa faculdade particular para a qual Meg ganhou bolsa. O plano era que nós duas nos mudássemos para Seattle depois de terminarmos o ensino médio.
Falávamos sobre isso desde o oitavo ano. Nós duas na Universidade de Washington, dividindo um quarto de dormitório durante os primeiros dois anos, e então morando fora do campus pelo restante do curso. Mas Meg conseguiu uma bolsa integral na Cascades, uma proposta muito melhor do que a UW tinha a oferecer. Quanto a mim, fui aceita na UW, mas sem nenhum tipo de bolsa. Tricia deixou bem claro que não iria me ajudar. “Finalmente consegui me livrar das minhas dívidas.” Assim, recusei minha admissão na UW e decidi ficar na cidade. Meu plano era cursar a faculdade comunitária durante dois anos e depois pedir transferência para Seattle, a fim de ficar perto de Meg.
Joe e Sue ficam sentados em silêncio. Eu observo Sue cutucar as unhas; as cutículas estão em frangalhos. Enfim, ela levanta a cabeça.
— A faculdade tem sido ótima; eles se ofereceram para juntar as coisas do quarto dela e enviar tudo para nós, mas não consigo suportar a ideia de pessoas estranhas mexendo nas coisas de Meg.
— Mas e os colegas de república dela?
Cascades era pequena e quase não tinha alojamentos. Meg mora — quer dizer, morava — fora do campus, em uma casa que dividia com outros alunos.
— Ao que parece, simplesmente trancaram o quarto dela e o deixaram do jeito que estava. O aluguel está pago até o final do período, mas agora eles precisam esvaziá-lo e trazer tudo... — A voz dela falha.
— Para casa — conclui Joe.
Demoro alguns instantes para entender o que eles querem, o que estão me pedindo. A princípio, fico aliviada, porque não preciso confessar que não sabia o que Meg estava planejando fazer. Na única vez na vida em que ela havia precisado de mim, não fui capaz de ajudá-la. Mas, então, sinto o peso do que eles estão me pedindo; é como um tijolo acertando meu estômago. Isso não significa que não o farei. Vou fazer. É claro que sim.
— Vocês querem que eu arrume as coisas dela?
Eles concordam com a cabeça. Eu repito o gesto. É só o que posso fazer.
— Depois que terminarem as suas aulas, é claro — responde Sue.
Oficialmente, minhas aulas terminam mês que vem. Extraoficialmente, no dia em que recebi o e-mail de Meg. Passei a tirar as piores notas. Ou fui reprovada por faltas. A diferença entre as duas coisas não importa muito.
— E se você conseguir uma folga no trabalho — completa Joe.
Ele fala isso em um tom respeitoso, como se eu tivesse um trabalho importante. Eu faço faxina. Como todo mundo na cidade, as pessoas para quem trabalho sabem sobre Meg e foram todas muito simpáticas, me dizendo que poderia me afastar o tempo que eu precisasse. Mas se tem algo de que não preciso é de horas vagas para pensar em Meg.
— Posso ir a qualquer momento. Amanhã mesmo, se quiserem.
— Ela não tinha muita coisa. Você pode levar o carro — comenta Joe.
Joe e Sue têm um carro só, então eles organizam a rotina como uma expedição da Nasa para que Sue possa deixar Joe no trabalho, levar Scottie para a escola, ir para o trabalho e depois pegar todo mundo no final do dia. Nos fins de semana é a mesma coisa, pois precisam fazer as compras e tudo o que não dá tempo para resolver nos dias úteis. Eu não tenho carro.
Às vezes, muito de vez em quando, Tricia me deixa usar o dela.
— Por que não vou de ônibus? Ela não tem tanta coisa. Tinha.
Joe e Sue parecem aliviados.
— Nós vamos pagar a sua passagem. Você pode mandar qualquer caixa a mais pelo correio — diz Joe.
— E não precisa trazer tudo de volta. — Sue faz uma pausa. — Só as coisas mais importantes.
Eu aquiesço. Eles ficam tão agradecidos que eu preciso desviar o olhar. A viagem não é nada de mais: vai levar só três dias. Um dia para chegar lá, um dia para arrumar as coisas, um dia para voltar. O tipo de coisa que Meg teria se oferecido para fazer sem que precisassem pedir.

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