36

Assim que voltamos à rodovia, é como se alguém tivesse sugado a Cody de dentro de mim.
Ben fica me encarando o tempo todo com uma expressão preocupada, mas eu evito encará-lo. Evito o próprio Ben. Faço uma bola com o meu suéter, improvisando um travesseiro que apoio contra a janela. Algum tempo depois, adormeço.
Quando acordo, algumas horas mais tarde, o ar frio das montanhas da Sierra Nevada foi abafado pelo calor seco do deserto. Quase consigo esquecer que fizemos aquele desvio. Estou meio zonza por causa do calor e sinto um gosto metálico na boca, bem como os restos secos do que suponho ser baba nos meus lábios. Ben está me observando. Embora eu tenha gostado de vê-lo dormir, me sinto exposta ao estar do outro lado.
— Onde estamos? — pergunto.
— Literalmente no meio do nada. Passamos por um lugar chamado Hawthorne algum tempo atrás, mas, fora isso, nada. Não tenho visto nem carros na estrada. O lado positivo é que dá para correr feito um louco por aqui.
Olho para o painel. Ben está indo a quase 145 quilômetros por hora. A estrada vazia e reta se estende à nossa frente e oscila com miragens, pequenos oásis de água no deserto que não existem de verdade. Assim que alcançamos um, ele desaparece no asfalto e surge outro no horizonte.
— A esta velocidade, devemos chegar a Vegas às cinco e Laughlin às sete — avisa Ben.
— Ah.
— Você está bem?
— Quer parar de me perguntar isso? — Pego a garrafa de Dr. Pepper, que já está morna. — Ah, que nojo.
— Quando vir uma loja de conveniência, é só gritar.
Ben parece irritado, porém, ao olhar para mim, sua expressão se abranda. Ele abre a boca para dizer alguma coisa, mas então parece reconsiderar e continua calado.
Eu suspiro.
— O que foi?
— Não é você; é ele.
Ainda estou me sentindo meio nua diante de Ben, logo dou uma resposta atravessada.
— Isso é algo que você costuma dizer antes de dar um pé na bunda das suas garotas? “Não é você; sou eu.”
Ben se vira para mim, então volta a olhar para a estrada.
— Posso vir a dizer, se algum dia chegar a esse ponto — diz ele, frio como gelo. — Eu estava falando do seu pai.
Não respondo. Não quero falar sobre o meu pai, ou o que quer que fosse aquele homem.
— Ele é um merda — continua Ben. — E não tem nada a ver com você.
Permaneço calada.
— Quero dizer, eu posso não saber nada sobre o que você está passando, mas isso é algo que minha mãe sempre me disse sobre o meu pai. Que não era eu. Era ele. E eu nunca acreditei. Sempre achei que ela estivesse falando só para me agradar. Porque só podia ser culpa minha. Mas, depois de ver aquele desgraçado, e você, acho que estou começando a mudar de ideia.
— Como assim? — pergunto.
Ben não desvia os olhos da estrada, como se precisasse de toda a sua concentração para seguir pela rodovia plana e reta.
— Quando o seu pai é um sacana desde o início, e não dá para ser mais desde o início se ele nega a sua existência, não é porque você fez algo de errado. É porque ele fez. — Ele diz isso às pressas, cuspindo as palavras, então acrescenta: — E talvez não seja da minha conta, mas estou esperando para falar isso desde, sei lá, 460 quilômetros atrás.
Olho para Ben. E novamente fico espantada. Como podemos sentir tantas coisas parecidas e ser tão diferentes?
— Você achava que era culpa sua, em relação ao seu pai?
Ben não fala nada, apenas concorda com a cabeça.
— Por quê?
— Eu era uma criança sensível. Um bebê chorão. Sempre correndo para a mamãe. Ele odiava isso. Me dizia que eu precisava criar colhões. Então eu tentei. Tentei virar macho. Ser como ele. — Ben faz uma careta. — Mas, ainda assim, ele mal conseguia olhar na minha cara.
Não sei o que dizer, portanto apenas digo a Ben que sinto muito.
Ele solta o volante por alguns instantes e ergue as mãos no ar, como se dissesse “O que se pode fazer?”.
Preciso resistir ao impulso de afagar o rosto de Ben. Não consigo imaginar como seria isso, ter um pai cuja ideia de masculinidade era o que Ben descrevera. Passar a vida ao mesmo tempo imitando e tentando fugir disso. Penso em Tricia. Em como ela foi ausente, em sua interminável sucessão de casos de três meses. Em como ela se recusou a me colocar em contato com meu pai. Em como basicamente abdicou da sua função, deixando os Garcias me criarem em seu lugar. Essas coisas sempre me magoaram, mas agora me pergunto se não deveria agradecer a ela por ter sido assim.

° ° °

O tráfego fica mais pesado em Las Vegas, e então de repente estamos em uma cidade enorme, o que é desnorteante e estranho. Uma hora depois, estamos no meio do nada outra vez. Mais uma hora e estamos em Laughlin.
Laughlin é uma estranha espécie de híbrido: em parte, cidade abandonada no meio do deserto, mas com vários desses hotéis imensos fincados na parte central, arranha-céus às margens do rio Colorado. Atravessamos a área deprimente do centro da cidade até uma parte ocupada por motéis-cassinos mais modestos, parando em um chamado Wagon Wheel Sleep ’n’ Slots, que anuncia quartos por 45 dólares a noite.
Entramos e tocamos a sineta. Uma mulher simpática com o cabelo trançado pergunta em que pode nos ajudar.
— Você tem dois quartos? — indaga Ben.
O dinheiro está minguando mais rápido do que eu esperava. Penso no ataque de pânico que tive no último quarto de hotel, na voz reconfortante de Ben do outro lado da linha. No que ele me contou mais cedo no carro.
— Pode ser um quarto com duas camas — afirmo.
Pago pelo quarto e nós vamos pegar as coisas no carro. Estava tão limpo quando saímos e agora está entulhado de detritos de viagem. Tento limpá-lo um pouco enquanto Ben carrega nossas mochilas até o quarto.
Quando chego lá em cima, ele está folheando alguns papéis.
— Eles têm um menu próprio. Quer sair para comer alguma coisa? Ou pedir uma pizza?
Me lembro da nossa tarde alguns meses atrás: burritos, TV, o sofá.
— Vamos de pizza.
— Pepperoni? Calabresa? As duas?
Dou uma risada.
— Ou uma ou outra.
Ben pega o menu e, meia hora depois, uma pizza, pãezinhos de alho e latas de Pepsi e Dr. Pepper aparecem na nossa porta. Espalhamos tudo sobre uma toalha em uma das camas e nos sentamos de pernas cruzadas, como em um piquenique.
— Meu Deus, como é bom estar fora daquele carro — comento.
— Pois é. Às vezes, quando estamos em turnê, minha bunda continua tremendo dias depois.
— Pena que este não é um daqueles motéis com camas vibratórias, assim você poderia continuar sentindo a magia.
— Nunca estive em um desses, para dizer a verdade — fala Ben.
— É, eu também não. Na real, não fiquei em muitos motéis.
A verdade é que posso contar nos dedos as noites que passei em um quarto de hotel ou motel. Tricia não era de fazer viagens de férias. A maioria foi com os Garcias e geralmente íamos acampar ou ficávamos nas casas de parentes deles.
— Então você não teve muitas oportunidades de dividir um quarto de motel com um cara antes? — pergunta Ben, a voz suave, enquanto analisa com muito mais atenção do que o normal sua fatia de pizza.
— Nenhuma.
— Quer dizer que nunca dividiu um quarto antes? Com um cara? — Ele parece estranhamente acanhado.
— Nunca dividi nada com um cara antes.
Ben me encara, como se tentasse determinar o que exatamente eu estou dizendo. Deixo que meu olhar responda à pergunta. Os olhos dele, de um azul límpido, como uma piscina vazia ao ar livre, se arregalam de espanto.
— Nada?
— Nada.
— Nem mesmo... uma pizza?
— Ah, já comi pizzas com outros caras antes. Mas nunca dividi uma. Tem uma grande diferença.
— Tem?
Faço que sim com a cabeça.
— Então, e agora? — pergunto.
— E agora o quê?
— O que lhe parece?
Ben franze a testa, confuso, como se não tivesse certeza se ainda estamos falando da pizza. Ele olha para os restos mortais dela.
— Parece que você comeu duas fatias e eu, quatro, e que não gosta tanto de pepperoni quanto eu.
Concordo, olhando para a pilha gordurosa de pepperoni que tirei das minhas fatias.
— E que tudo isso está acontecendo em um quarto de motel em que estamos os dois sentados — continua ele.
Torno a assentir. Por um instante, lembro que jurei nunca mais dormir debaixo do mesmo teto que Ben. Talvez ele também se lembre disso. Obviamente, estou quebrando a promessa esta noite, embora, para dizer a verdade, já a tenha quebrado em espírito um bom tempo atrás.
E nada disso parece ter mais importância.
— Então, o que isso significa? — pergunta ele.
Por mais que tente soar causal, Ben parece ansioso, e muito jovem.
— Significa que estou dividindo isto tudo com você.
Isso é tudo que estou disposta a lhe dar, embora, na realidade, pareça muito. Nesse momento, algo que eu disse ontem quando tentava convencê-lo a dormir no carro me volta à mente: Podemos criar um novo código.
Talvez seja isso que estamos fazendo agora.

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