32

Acordo na manhã seguinte com a coalização internacional de crianças dos Zellers pulando em cima do sofá. Me levanto e me arrumo. Estou ajudando Sylvia a preparar waffles quando Bem vem arrastando os pés e esfregando os olhos.
— Vamos tomar o café na estrada? — pergunto.
— Vocês já estão indo? — indaga Sylvia.
Invento desculpas e digo que não queremos abusar da hospitalidade dela, mas Sylvia diz que não estamos dando trabalho algum.
— E hoje é domingo.
— O culto começa às dez — fala Richard, aparecendo com um jeans que parece limpo e uma blusa sem referências a drogas. — Vocês não podem ficar? O reverendo vai ficar chateado se forem embora.
Olho para Ben, que não fala comigo desde ontem à noite. Ele dá de ombros, transferindo a decisão para mim. Encaro Richard e Sylvia e percebo que não importa que eu não tenha trazido um presente. Isso é o que importa.
Baixo os olhos para meus shorts cortados e minha camisa regata.
— É melhor eu me trocar.
— Fique à vontade — diz Sylvia. — Mas nossa congregação não tem restrição alguma quanto ao vestuário.
Saímos em caravana às nove e meia, Richard no carro comigo e com Ben, o resto da família na van, que tem um daqueles adesivos com o logotipo Coexist, símbolo do movimento que defende a coexistência pacífica entre as crenças.
Em frente à igreja, as crianças da família Zeller são apanhadas por diferentes membros da congregação enquanto Sylvia e Jerry se dedicam à função de cumprimentar todos ao redor. Richard aproveita para entrar despercebido na igreja comigo e com Ben.
Nós nos sentamos nos bancos, que estão ligeiramente desgastados; o ar cheira um pouco a óleo de cozinha. É uma das igrejas mais simples em que eu já estive, e estive em muitas nesse ano que passou. Antes disso, eu mal frequentava igrejas — devo ter ido apenas à primeira comunhão de Meg e a uma ou outra missa do galo. Tricia em geral trabalha nos sábados à noite, logo os domingos são reservados para a adoração do travesseiro.
O culto é diferente de qualquer outro que eu tenha visto. Não há coro. Em vez disso, várias pessoas se levantam, cantam, tocam violão ou piano, e qualquer um pode participar. Algumas das canções são religiosas, outras não. Ben fica feliz quando um cara barbudo toca uma balada chamada “I Feel Like Going Home”. Ele se inclina para perto de mim e me diz que quem a compôs foi Charlie Rich, um de seus artistas favoritos. É a primeira coisa normal que ele diz para mim desde nossa discussão na noite passada. Interpreto isso como uma oferta de paz.
— É linda — comento.
Jerry praticamente não intervém durante a maior parte da cerimônia, permitindo que um rapaz mais novo, que é o líder do ministério da juventude, se encarregue dos procedimentos.
Então, quando a cantoria acaba e os anúncios se encerram, ele se levanta do lugar em que estava sentado tranquilamente, sobe ao púlpito e começa a falar com uma voz ao mesmo tempo serena e imponente.
— Algumas semanas atrás, Ceci ficou doente. Pegou aquela virose que andou circulando pela cidade e estava letárgica, com febre. Sei que muitos de vocês passaram por isso. — Um burburinho se espalha pela congregação. — Pedro não teve aula nesse dia, então precisou ir conosco ao hospital. Ceci não gosta de consultórios médicos, talvez por já ter estado em tantos deles, por isso estava agitada, chorando. Quanto mais esperávamos, pior ficava a situação. E tivemos que esperar bastante. Uma hora se passou. Depois, uma hora e meia. Ceci, que não parava de chorar, vomitou. Basicamente em cima de mim.
Risadinhas compreensivas por parte da congregação.
— Até hoje não sei se foi por conta do vírus ou do transtorno por ter que ir ao médico. Não faz diferença. Mas uma mãe que estava sentada com a filha na sala de espera ficou visivelmente incomodada diante da bagunça que Ceci fez. E me repreendeu por estar expondo todas as outras crianças a ela. Até certo ponto, eu entendi. Nenhum de nós quer que nossos filhos fiquem doentes. Mas, como pai, fiquei furioso. Me imaginei dizendo coisas muito pouco cristãs para aquela mulher. Afinal, era justamente por Ceci estar doente que estávamos ali, no consultório do pediatra, e aquela mãe não se comportava de maneira cristã. As enfermeiras estavam ocupadas demais para nos ajudar, e o máximo que fizeram foi oferecer algumas toalhas e antissépticos. Enquanto isso, Ceci não parava de chorar.
Ele fez uma pausa e prosseguiu:
— Depois de algum tempo, consegui limpá-la e ela dormiu. Pedro estava entretido com um quebra-cabeça que encontrou e, como eu tinha alguns segundos de folga, peguei uma revista para ler. Abri em uma página qualquer. Era um artigo sobre o perdão. Mas não era uma publicação religiosa. Era uma revista médica e o artigo falava sobre um estudo que analisara os benefícios do perdão para a saúde. Pelo que li, o perdão é capaz de reduzir a pressão arterial, diminuir a ansiedade e amenizar a depressão. Foi então que compreendi que não havia chegado àquele artigo por acaso. Enquanto o lia, pensei em Colossenses 3:13: Suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor lhes perdoou. E eu perdoei todas as pessoas naquela sala de espera: a mulher, por ter sido tão rude; as enfermeiras, por estarem ocupadas demais para nos ajudar; o médico, por nos deixar esperando; até mesmo Ceci, por sua histeria. Quando fiz isso, fui lembrado do motivo pelo qual Deus quer que exerçamos o perdão. Não é só porque é a chave para um mundo melhor, mas também por conta do que ele faz conosco. O perdão é o presente de Deus para nós. Jesus nos perdoou. Ele perdoou nossos pecados. Esse foi o presente dele. Ao permitir que perdoemos uns aos outros, nos possibilitou receber esse amor divino. O artigo tinha razão. O perdão é um remédio milagroso. Ele é o remédio milagroso de Deus.
Jerry prossegue, citando mais trechos das Escrituras sobre o perdão. Mas, a esta altura, já estou com a pulga atrás da orelha. Na noite passada, fui para a cama primeiro, deixando Ben e Richard sozinhos em volta do fogo. Aqueles dois mal se aguentam, então imaginei que tivessem ido dormir logo depois. Mas agora, enquanto o pai de Richard continua a falar, vejo que não foi bem assim. Alguém bateu com a língua nos dentes. Círculo sagrado é uma ova.
— Depois da nossa consulta — continua Jerry —, eu estava na recepção acertando as contas quando topei com a mãe contrariada outra vez. Eu já não sentia rancor algum contra ela. Não tive que me esforçar para perdoá-la. Aconteceu naturalmente. Eu lhe disse que esperava que sua filhinha estivesse se sentindo melhor. Ela se virou para me olhar. Só então pude ver quanto estava cansada, como muitos de nós, pais, sempre estamos. “Ela vai ficar bem”, foi a resposta. “O médico disse que está sarando.” Olhei para a garotinha e notei um pequeno corte, vermelho, ainda aberto, no seu queixo. Tornei a olhar para a mãe e vi algo muito mais profundo ali: uma angústia que não estava nem perto de sarar tão bem quanto o corte. Queria perguntar o que havia acontecido, mas Pedro e Ceci estavam me puxando para irmos embora e, além do mais, não era da minha conta. Mas suponho que a mulher estivesse precisando se abrir, pois me contou que, algumas semanas antes, na pressa de sair de casa pela manhã, dera um puxão na filha que se demorava junto às flores. Distraída pela dança das abelhas, a garotinha batera de cara no portão e se cortara. “Ela sempre vai carregar essa cicatriz”, disse a mãe com uma voz agoniada. Foi então que entendi a raiva que ela sentia, e quem ela ainda não havia perdoado.
Jerry fez uma nova pausa, então continuou:
— “É verdade, mas só se você a carregar também”, foi o que respondi. Ela me encarou, e eu sabia que o que estava lhe pedindo para fazer, o que Deus nos pede para fazer, o que estou pedindo para todos vocês fazerem não é fácil. Deixar nossas feridas cicatrizarem. Perdoar. E, às vezes, o mais difícil de tudo: perdoar a nós mesmos. Mas, se não fizermos isso, estaremos desperdiçando uma das maiores dádivas de Deus para nós: o seu remédio milagroso.
Quando o sermão termina, Richard se vira para mim, quase sorrindo. Ele parece muito orgulhoso. Do seu pai, de si mesmo, de ter orquestrado esse anúncio de utilidade pública.
— O que você achou?
Não respondo. Apenas saio dali, abrindo caminho pelas pessoas.
— Qual é o problema? — pergunta Ben.
O problema é que Richard Zeller e o pai dele não fazem a menor ideia do que estão falando. Não sabem daquelas manhãs em que a raiva é a única coisa, a única, que faz você conseguir suportar o dia. Se tirarem isso de mim, eu fico totalmente vulnerável: em carne viva e sangrando, e aí mesmo é que não terei a menor chance.
Caminho até a entrada, me segurando para não chorar de raiva. Richard está logo atrás de mim.
— Não estava aguentando mais o reverendo? — diz ele em tom de brincadeira, mas noto a preocupação em seus olhos.
— Você contou a ele. Disse que não iria contar a ninguém e contou a ele. Você mentiu.
— Só voltei a ver meu pai no café da manhã, e você estava junto.
— Então como ele poderia saber? Como poderia ter um sermão tão perfeito esperando por mim?
Richard olha de volta para o santuário, onde a cantoria recomeçou.
— Só para constar, Cody, meu pai prepara os sermões dele com semanas de antecedência; não sai improvisando de uma hora para outra. Além disso, você não é a única que carrega um peso nas costas e tem merdas que precisam ser perdoadas, mas se, como o reverendo disse, a revista abriu na página certa...
— Você está chapado? — interrompo-o.
Ele ri.
— Não contei ao reverendo sobre a sua viagem. Se quiser saber a verdade, tive que convencer McCallister a não desistir. Você tem mais colhões do que ele, o que não me surpreende. — A cantoria acaba. Richard meneia a cabeça em direção ao púlpito. — Venha. Está quase acabando... Por favor.
Sigo Richard de volta para o nosso banco justamente quando Jerry está dando as bênçãos para a congregação, para os doentes e aflitos, para os que estão se casando, esperando bebês.
Logo no final, ele diz:
— E que Deus abençoe e guie Cody e Ben. Que eles encontrem não só o que estão buscando, mas aquilo de que precisam.
Torno a olhar para Richard. Ainda não estou convencida de que ele tenha falado a verdade. Mas agora a traição, se é que ela existiu, parece menos importante do que a bênção.

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