27

Quanto volto à biblioteca, a porta de entrada está trancada. O que é estranho. Sei os horários de funcionamento de cor. Fechada aos domingos e segundas. Aberta às terças das 13h às 18h.
Confiro o celular. Terça, 15h30. Sacudo a porta e então, frustrada, dou um chute nela.
Volto no dia seguinte, em que a biblioteca deveria estar aberta o dia todo, mas deparo com a mesma situação. Desta vez, a Sra. Banks está lá dentro. Bato à porta.
— O que está havendo? — pergunto, quando ela a destranca.
— Houve um pequeno incêndio por causa de uma pane elétrica no fim de semana. Ficaremos sem energia no prédio até refazer a fiação. Há anos alertamos sobre o estado das instalações elétricas. — Ela balança a cabeça e dá um suspiro. — Mas, com os cortes no orçamento…
— O que eu vou fazer? — questiono, desesperada.
A biblioteca tem sido minha tábua de salvação, minha única forma de contato com All_BS. Já faz quatro dias que não nos comunicamos e estou na fissura.
A Sra. Banks sorri.
— Não se preocupe. Já pensei nisso. — Ela volta a entrar e retorna com uma sacola de compras cheia de livros. — Pode ficar com eles até reabrirmos. Não deve demorar mais do que uma ou duas semanas. Estou emprestando esses para você por fora, por assim dizer — diz a Sra. Banks com uma piscadela. — No esquema da palavra de honra. Mas confio em você.

° ° °

Volto a ter acesso à internet apenas na sexta, na casa da Sra. Chandler. Mas ela está lá, então não posso roubar o sinal às escondidas. Estou desesperada por notícias de All_BS, o suficiente para explicar à Sra. Chandler sobre o incêndio na biblioteca e perguntar se posso ficar depois do trabalho para usar a conexão. Ela me olha fixamente por um bom tempo.
— Você não tem internet em casa? — pergunta por fim.
Eu balanço a cabeça, constrangida.
— Claro. Use quando quiser.
Quando faço o login, estou tensa e ansiosa. E se All_BS tiver perdido o interesse? Mas então vejo a quantidade de mensagens não lidas que tenho dele. O silêncio conspirou a meu favor. Acostumado a ter notícias minhas quase todos os dias, exceto aos domingos e às segundas, All_BS está claramente preocupado por eu ter passado quase uma semana sem responder a nenhuma de suas mensagens. O tom das mensagens é de aflição crescente. Não consigo dizer se o problema seria eu ter me matado sem lhe dizer — ou eu ter mudado de ideia.
Tricia sempre diz que os homens desejam mais uma garota quando acham que não vão conquistá-la.
Garanto a ele que foi só um problema de acesso à internet. Mas então penso no rosto preocupado da Sra. Chandler e tenho uma ideia.
Acho que vou ficar um bom tempo sem acesso regular à internet, digito, exagerando os problemas elétricos da biblioteca. E não sei como vou fazer isso sem a sua ajuda. Já escolhi meu trajeto, mas, se não pegar o ônibus logo, corro o risco de perdê-lo. Não há nenhuma outra maneira de nos comunicarmos? Como por telefone?
A resposta dele parece levar uma hora para chegar, mas a espera é de apenas cinco minutos.
Não acho que seja uma boa ideia, escreve ele.
Eu me obrigo a esperar dez minutos para responder. Não vejo outra saída, respondo. E então digito meu número de celular. Ligue para mim se puder.

° ° °

O telefone não toca. E, sem internet, também não podemos trocar e-mails. Por mais que me custe admitir, sinto falta das nossas conversas. E isso significa que sinto falta dele.
O trabalho me entedia. Não importa quanto eu esfregue e limpe, as casas continuam parecendo sujas para mim. Certa manhã, chego à casa dos Purdues e vejo o carro do Sr. Purdue na entrada. Minha vontade é sair correndo dali, mas para onde posso fugir? Crio coragem e abro a porta com a chave que a Sra. Purdue esconde para mim debaixo da pedra falsa.
Estou na cozinha, pegando os materiais de limpeza de debaixo da pia, quando o Sr. Purdue aparece.
— Avisei no trabalho que estou doente — ele me informa, respondendo a uma pergunta que não fiz.
— Espero que melhore logo.
— Ah, eu estou bem. Tirei o dia mais para cuidar da saúde mental.
Vou andando para o banheiro sem responder. Fecho a porta, por mais que isso vá intensificar o cheiro dos produtos químicos. Estou agachada sobre a banheira com um frasco de desinfetante quando ouço a porta se abrir atrás de mim. Os Purdues têm dois banheiros; não há necessidade de ele usar este. Espero o Sr. Purdue dar meia-volta e ir embora, mas não é o que acontece. Ele se aproxima. Está descalço e consigo ouvir o som dos dedos dos pés contra o piso de azulejos.
Levanto e me viro, o frasco ainda na mão, o dedo ainda no gatilho do borrifador. Ele dá mais um passo na minha direção. A distância entre nós já é desnecessariamente pequena, e então ele dá outro passo.
Seguro o frasco na altura do rosto dele e aperto o gatilho sem força, soltando um pequeno borrifo de alerta.
— Me dê um motivo — ameaço. — Só um.
Tento soar durona, mas, aos meus ouvidos, pareço estar quase implorando.
Ele sai andando de costas do banheiro, os braços levantados, rendendo-se. Quando ouço o cantar dos pneus do carro dele, minha raiva já passou. Mas, ao contrário da última vez que ele se meteu comigo, não me sinto triunfante, como se fosse Buffy, a Caça-Vampiros. Já o alertei antes, mas ele simplesmente me pagou 10 pratas a mais e voltou para tirar mais uma casquinha.

° ° °

A noite é deprimente. Tricia saiu com Raymond e os nossos vizinhos estão dando uma festa. Ainda sinto o cheiro de água sanitária, mesmo depois de tomar banho, mas é como se fosse a depravação do Sr. Purdue que eu não consigo lavar.
Não aguento mais olhar para as mensagens do Solução Final, então tento me obrigar a fazer algo diferente. Folheio alguns dos livros da biblioteca, mas as palavras se misturam nas páginas. Ligo o computador de Meg para jogar paciência, mas acabo abrindo a caixa de entrada dela outra vez. Fico olhando pela centésima vez para a lacuna de e-mails, como se as mensagens apagadas pudessem se materializar num passe de mágica e responder a todas as minhas perguntas. Volto a ler os e-mails que ela escreveu para Ben. Leio também as respostas dele. Você precisa me deixar em paz. Como isso havia me deixado furiosa... Mas é difícil sentir raiva agora. Pois eu não tinha dito a ela a mesma coisa, só que sem palavras?
Ela estava irritada comigo? Por eu estar perto demais? Por ter me afastado? Por não ter passado o Natal no Oregon? Abro o e-mail que ela escreveu para mim depois de eu ter quebrado semanas de silêncio para lhe contar que o Sr. Purdue havia apertado minha bunda.
Rá! Aquele velho tarado. Como eu queria ter visto isso! Sei que você sempre será forte; você sempre será minha Buffy, escreveu ela.
Pego o telefone. As mensagens de texto de Ben continuam na memória, terminando bruscamente depois que eu lhe disse para não falar mais comigo. Meu dedo paira sobre o botão de chamada. Me imagino conversando com ele, contando-lhe sobre o que o Sr. Purdue fez hoje, contando-lhe tudo o que aconteceu durante as últimas semanas.
Só quando ouço o primeiro toque é que me dou conta de que apertei o botão. Ao escutar o segundo, lembro-me de quantas vezes o telefone dele tocou quando estávamos sentados vendo TV juntos. Imagino que meu telefonema interrompa o momento que ele está passando com alguma garota agora. Com uma sensação repentina e brusca de repulsa, percebo que me permiti virar esse tipo de garota. Desligo antes do terceiro toque.
Há também uma mensagem de Alice com o número de Tree na memória do meu celular. Ligue para ela, insistiu Alice. Não fiz isso, pois o único motivo de encontrar o amigo misterioso era encontrar All_BS. Mas agora a amargura sarcástica de Tree parece combinar com meu estado de espírito.
A hippie “paz e amor” mais rabugenta do mundo atende:
— Que foi?
— É Tree quem está falando? — pergunto, embora a tenha reconhecido.
— Quem quer saber?
— É Cody. — Faço uma pausa. — Amiga da Meg.
O silêncio que paira do outro lado da linha não é amigável. Não parece que ela vá falar.
Então, continuo.
— Eu, ahn, estive com Alice algumas semanas atrás.
— Parabéns.
A boa e velha Tree. Pelo menos ela não é volúvel.
— Ela mencionou que Meg talvez tenha se aberto com você e dito que estava tomando antidepressivos ou coisa parecida.
— Se aberto comigo? — Isso é dito com algo entre uma risada e um latido. — Por que ela faria isso? Não exatamente fazíamos as unhas juntas.
A imagem é tão bizarra que quase me faz sorrir.
— É, não me parecia provável, mas Alice comentou que você disse algo a respeito. Mas não conseguia se lembrar o quê.
— Ela nunca se abriu comigo. Mas alguém deveria ter enfiado um frasco inteiro de antidepressivos pela sua goela abaixo. Ela obviamente estava precisando.
Meu quase sorriso desaparece.
— Do que você está falando?
— Nunca conheci ninguém que passasse tanto tempo na cama. Exceto minha mãe durante as crises depressivas.
— Sua mãe?
— Ela é bipolar. Não sei se Meg era. Nunca a vi no estágio da mania, mas a vi deprimida. E, acredite, eu sei como é.
Estou prestes a contar a Tree sobre a mononucleose, sobre quanto Meg ficava cansada às vezes desde então, sobre como ela só dormia o suficiente para cinco pessoas porque gastava sozinha a energia de dez. Ela precisa de um tempo para se recuperar, dizia às vezes Sue, fechando a porta do quarto de Meg e me mandando embora.
Então Tree diz:
— Além do mais, pessoas saudáveis não falam daquele jeito sobre suicídio.
Sinto os pelos da nuca se arrepiarem.
— O quê?
— Fizemos uma aula de literatura feminista juntas, e uma noite eu, ela e algumas outras garotas estávamos em um café, estudando em uma mesa, e Meg começou a perguntar para cada uma de nós como escolheríamos nos matar. Estávamos lendo Virginia Woolf, então a princípio achei que fosse por isso. Todas demos respostas não muito convictas: um tiro, comprimidos, pular de uma ponte... Mas não Meg. Ela foi muito específica: “Eu tomaria veneno; faria isso em um quarto de motel e deixaria uma boa gorjeta para a arrumadeira.”
Ficamos caladas. Pois, é claro, foi exatamente isso que Meg fez.
— Quando ela disse isso, falei que ela devia parar de resmungar e ir ao centro de saúde do campus e pedir um pouco de Prozac.
Uma amiga me disse para ir ao centro de saúde do campus, pois eles podiam me arranjar alguns medicamentos.
— Então foi você — sussurro.
Consigo ouvir a surpresa dela do outro lado da linha.
— Eu?
— Ela falou que uma amiga lhe disse para ir ao centro de saúde do campus, e eu falei com dezenas de pessoas e ninguém sequer tocara no assunto, ninguém havia pensado em sugerir isso. Exceto você.
— Nós não éramos amigas.
— Bem, nós éramos. Éramos melhores amigas e eu não só não sugeri isso, como nem me passou pela cabeça.
— Então nós duas a deixamos na mão — diz Tree.
Há muita raiva em sua voz. E é só então que entendo. A animosidade. É Meg. São os tentáculos do suicídio dela se espalhando, afetando pessoas que mal a conheceram.
— Desculpe — fala Tree baixinho.
— Ela deu ouvidos a você. Foi ao centro de saúde do campus e pediu medicamentos.
— Então o que aconteceu? Eles não fizeram efeito?
— Até onde sei, você precisa tomá-los para fazerem efeito.
— Então ela não os tomou?
— Alguém a convenceu do contrário.
— Por que alguém faria uma coisa dessas? Foram os medicamentos que salvaram a vida da minha mãe.
Penso em todas as coisas que li no fórum, sobre os medicamentos entorpecerem a alma.
Mas não foi por isso. Foi porque alguém convenceu Meg de que não valia a pena salvar a própria vida. De que a morte era uma opção melhor. Foi porque, no fim das contas, quando deveria ter sido eu sussurrando em seu ouvido, dizendo-lhe quanto ela era incrível, como sua vida era e podia voltar a ser maravilhosa, quem estava sussurrando era All_BS.
Tree tinha razão ao dizer que Meg foi deixada na mão. Mas não foi ela quem fez isso. Fui eu. Eu deixei Meg na mão em vida. Mas não a deixarei na mão na morte.

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