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Uma bela noite, estou sentada diante do computador, olhando para todas as mensagens que postei no fórum do Solução Final e para todas as respostas que recebi. Agora já são páginas em excesso para imprimir sem despertar suspeitas na Sra. Banks, então comecei a salvar tudo como arquivo no HD.
A porta do meu quarto se abre. Fecho o computador na mesma hora.
— Já ouviu falar em bater? — pergunto a Tricia.
— Quando eu estiver morando na sua casa, vou pensar no assunto.
Estou prestes a mencionar que pago aluguel e que, portanto, a casa é minha também, mas então penso na caixa cheia de dinheiro escondida debaixo da minha cama e decido que não é uma boa ideia trazer o assunto da grana para a conversa.
Ela dá um tapinha no meu computador, que está quente.
— Eu li que o aumento dos casos de câncer está relacionado ao tempo que as pessoas passam olhando para telas de computador o dia inteiro.
— Tudo dá câncer — retruco. — O sol dá câncer.
— Li que, com computadores, é muito pior. Toda essa radiação. Não é saudável.
— Onde você leu isso? Em um dos vários periódicos científicos que assina?
Ela ignora a alfinetada e se senta na beirada da cama.
— O que você anda lendo ultimamente?
— Eu?
— É, você. Que vivia com o nariz enfiado em um livro, e agora eu só vejo em frente a esse computador.
Quando devolvi a última leva de livros que a Sra. Banks pedira emprestado para mim, fingi que tinha lido todos, quando, na verdade, não terminara nenhum deles. Eu costumava ler à noite em casa, mas agora não consigo parar de olhar para a quantidade cada vez maior de arquivos sobre Meg, que escondi em uma pasta falsa chamada Faculdade. Ainda não obtive resposta de All_BS e continuo lendo todas as mensagens, tentando descobrir o que fazer em seguida.
Tricia gesticula para o computador.
— O que tem de tão interessante aí dentro, afinal? É algum outro mundo?
— Não é outro mundo. É só um monte de uns e zeros; programação de computadores não passa disso. — Mas não é verdade: All_BS está em algum lugar ali, e Meg também.
Tricia fica calada. Ela corre os olhos pelo meu quarto, pelas minhas paredes, pelas fotos coladas com fita adesiva de mim e Meg em shows; de mim e dos Garcias acampando no monte Saint Gelens; de mim e Meg no dia da formatura ano passado — ela radiante, eu com um sorriso afetado. Também há retratos meus com Tricia, mas não tantos se comparados aos que estou com os Garcias.
— Vocês duas eram como o dia e a noite — comenta Tricia, olhando para a foto de formatura.
— Não somos tão diferentes assim. Ou melhor, não éramos.
Meg tinha olhos castanho-escuros, enquanto os meus são de um castanho mais acinzentado, mas essa era a maior diferença entre nós duas. Nossos cabelos são castanhos e, embora Meg tivesse a pele cor de café de Joe, no verão minha pele morena fica tão escura que costumávamos dizer que eu poderia passar por filha de Joe. Só que eu não era filha dele e agora essa insistência em nossa semelhança me deixa constrangida. Será que essa era apenas mais uma tentativa minha de me manter atada a Meg?
— Não estou falando da aparência — explica Tricia. — Estou falando da personalidade. Você não tem nada a ver com ela.
Não respondo.
— Graças a Deus — acrescenta Tricia.
— Isso não é uma coisa muito bonita de se dizer.
Tricia continua a olhar para a foto de formatura.
— Meg tinha tudo. Toda aquela inteligência. Uma bolsa de estudos para uma boa faculdade. Tinha até esse computador caro que você não consegue largar. — Ela volta a me encarar. — Você só tinha a mim. E é inteligente, não me entenda mal, mas não como Meg. Ficou limitada a uma porcaria de faculdade comunitária e agora, pelo que estou vendo, nem isso foi para a frente.
Eu amarro um fio solto da colcha em volta do dedo até ele latejar. Obrigada, Tricia, por resumir com tanta precisão a minha inferioridade.
— Mas, mesmo com tudo contra, você se manteve firme — diz Tricia, continuando o massacre. — Não desistiu daquele maldito curso de dança que Tawny Phillips deixou você fazer de graça, nem depois de torcer o tornozelo.
— Eu não podia desistir. Tinha aquele grande solo no espetáculo de dança, All That Jazz — lembrei a Tricia.
Eu havia me esquecido disso. Mindy Thomas ficou furiosa quando eu consegui aquela vaga tão cobiçada. Desconfio que Tricia também não se lembre. Ela não pôde ir ao espetáculo. Precisava trabalhar. Os Garcias foram.
— Isso mesmo — prossegue Tricia. — E, na escola, você odiava matemática, mas continuou se esforçando até o final, e passou até naquele raio de trigonástica.
— Trigonometria — corrijo.
Ela faz um gesto no ar, como se não fizesse diferença.
— Você foi até o final e passou até naquilo porque queria ir para a faculdade. O que quero dizer é: você nunca desistiu, nem na dança, nem na matemática, nem em nada, e talvez tivesse mais motivos para isso. Você tinha um monte de pedras nas mãos, então resolveu limpá-las, deixá-las bonitas e fez um colar. Meg ganhou um colar de joias e se enforcou com ele.
Eu sei que deveria defender Meg. É da minha melhor amiga que estamos falando. E Tricia entendeu tudo errado. Ela não sabe a história inteira. Provavelmente tem inveja dos Garcias por eles serem a família que ela nunca foi.
Mas não defendo Meg. Posso não ser filha de Joe. Mas nunca me senti tão filha de Tricia quanto agora.

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