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O que torna uma pessoa apetitosa para alguém como All_BS? Por que ele escolheu ajudar Meg em vez de, digamos, Sassafrants ou o cara que vivia perguntando sobre veneno de rato? E como posso fazê-lo achar que sou uma dessas pessoas?
Volto a analisar os posts dele, em busca de um padrão. Ele responde mais a garotas do que a garotos — em especial a garotas inteligentes. Nunca responde aos semianalfabetos ou aos reclamões. Também parece se interessar por iniciantes, pessoas que estão apenas começando a pensar em “pegar o ônibus”. Gosta de filosofia (as postagens dele são cheias de citações) e parece atraído por usuários cujos posts também sejam filosóficos. Não é de espantar que tenha se sentido atraído por Meg.
O primeiro passo é óbvio: preciso postar no fórum. Um alô, como o de Meg. Algo que me apresente ao grupo, anuncie a intenção de me matar, mas como um questionamento. Se eu estiver muito segura, já pensando em comprar veneno de rato, não vou parecer um rato.
Levo vários dias para bolar algo e, então, travo na hora de criar um nickname. Tudo em que consigo pensar está relacionado a Meg e não sei quanto ela contou sobre si mesma para ele; não quero me entregar. Olho para a pilha de livros da biblioteca com o prazo de devolução vencido e decido usá-los como inspiração.

Kafkiana
Tiro no escuro
Já faz um tempo que venho pensando em pegar o ônibus. Acho que estou pronta para comprar minha passagem.
Só preciso de um pouco de incentivo. Estou preocupada com minha família e com a possibilidade de fracassar e, para ser sincera, de não fracassar. Reflexões inteligentes serão bem-vindas.

Assim que publico o post, eu me arrependo. Soa falso, não se parece com nada que eu escreveria e muito menos com as palavras de um suicida. Tenho certeza de que todos no fórum vão me denunciar como uma fraude. Mas, no dia seguinte, recebo várias respostas. Como no caso de Meg, a maioria é simpática e encorajadora (Seja bem-vinda! Parabéns!), o que é bizarramente gratificante. Só que All_BS não está entre os que responderam. Posso ter enganado algumas pessoas. Mas não a que estou procurando.
Troco o nickname, penso no post de Meg sobre Scottie e volto a tentar:

CR0308
Quem deixamos para trás
Há meses venho pensando seriamente em me matar, mas o que me impede é a minha mãe. Somos só nós duas, e fico pensando em como seria para ela se eu morresse. Eu posso suportar isso? Aliás, eu preciso suportar?

Este post também me cheira a conversa fiada. Não é totalmente verdade dizer que Tricia não me queria, porque, afinal, ela ficou comigo. Me parece mais que Tricia não queria ter filhos. Que tipo de mãe iria querer que sua filha a chamasse pelo primeiro nome porque se acha jovem demais para ser chamada de “mamãe”? Sei que Tricia provavelmente se sentiria mal se eu me matasse, mas também sei que ela está louca para se livrar de mim. Inclusive me diz isso com bastante frequência.
Recebo um monte de respostas, algumas me dizendo que, sim, fazer isso com uma mãe solteira é uma puta sacanagem. Que talvez eu devesse esperar ela se casar de novo, ou coisa parecida. Isso me faz rir. Tricia não pode se casar de novo se ela nunca casou. E, como os relacionamentos dela têm um prazo de validade de cerca de três meses, não consigo imaginar que isso aconteça.
Não recebo nada de All_BS. Tenho a estranha sensação de que, se continuar mentindo, não terei resposta dele. O que é meio que um beco sem saída, pois como posso fazer isso sem mentir?
Escolho um novo nickname, algo vagamente relacionado a Meg — Grapette e Repete —, mas ambíguo o suficiente para não ser exclusivo dela. Em vez de tentar encarnar Meg, tento encarnar a mim mesma.

Repete
A verdade
Perdi alguém recentemente. Uma pessoa tão importante que é como se parte de mim mesma tivesse morrido. E agora não sei mais ser como antes. Ela era o meu sol, e então meu sol se apagou. Imagine só se o Sol se apagasse de verdade. Talvez ainda restasse vida sobre a Terra, mas você iria continuar querendo viver aqui? Será que eu quero continuar vivendo aqui?

No dia seguinte, recebo um monte de respostas, embora nenhuma seja de All_BS. Algumas são explicações científicas estranhas sobre como é improvável que o Sol realmente se apague. Outras são mais solidárias com a minha perda. Outras sugerem que, se eu morrer, me reencontrarei com a pessoa que perdi. Elas falam com tanta convicção que é como se os usuários do Solução Final tivessem visitado a morte, feito anotações e voltado para dar notícias. Isso me faz lembrar que, para muitas dessas pessoas, isso é uma forma de diversão.
Mas estou começando a entender o encanto deste fórum. Ontem, quando cliquei no botão POSTAR, senti um alívio enorme. Por mais que tudo isso seja um embuste, pela primeira vez em muito tempo estou dizendo a verdade.

° ° °

Alguns dias depois, estou trabalhando na casa dos Thomas, tentando descobrir como fazer All_BS dar as caras. Imersa em pensamentos, limpando o quarto de Mindy Thomas, nem ouço ela entrar. Se tivesse ouvido, teria saído, fingindo que já ia limpar a garagem ou coisa parecida.
— E aí, Cody? — me chama Mindy com uma voz cantarolada. — Como vai você?
— Tudo ótimo! — respondo com todo o entusiasmo que consigo reunir enquanto seguro um espanador.
Mindy vem acompanhada pelo seu séquito, todas elas garotas um ano mais novas do que eu que não vejo muito desde que me formei. Sharon Devonne acena para mim. Ela era uma das acólitas de Meg: a adorava, costumava segui-la como se ali estivesse uma estrela de cinema.
Meg fingia ficar irritada com isso, mas eu sabia que achava Sharon um doce, especialmente por ela ser tão legal com Scottie, que era apaixonado por sua monitora de colônia de férias.
— E aí, Cody? — cumprimenta ela, tímida.
— E aí, Sharon? Como está indo o último ano?
— Quase acabando.
— Tem algum plano para depois de se formar?
— Dormir.
— Pode crer. Fiquei sabendo que…
— Sabem de uma coisa? — diz Mindy, interrompendo a conversa e batendo palmas. — Tive uma ótima ideia. Cody devia vir à festa. É no fim de semana que vem. Meus pais vão estar fora da cidade, vai ser demais.
Antes que eu consiga inventar uma desculpa, Mindy continua:
— Perfeito. Você pode ir à festa e fazer a limpeza depois.
Mindy vai embora rindo.
Eu fico parada, arrasada demais para falar qualquer coisa. Mindy Thomas? Nós costumávamos fazer aula de dança juntas. Ela sempre usava todas as roupas perfeitas: collants, polainas, sapatilhas, tudo combinando. Tricia não tinha nem como pagar as aulas — a professora, amiga dela, me deixava fazê-las de graça —, então eu simplesmente me vestia com o que conseguia juntar: collants rasgados, uma camisa regata, polainas de cores diferentes que encontrara em um brechó. Um dia, Mindy chegou vestida igual a mim. Achei que ela estava me zoando, mas, quando contei para Tricia, ela riu.
— A pirralha está copiando você.
Eu tinha minhas dúvidas quanto a isso. Mas de uma coisa eu tenho certeza: um ano atrás, Mindy Thomas jamais teria falado comigo do jeito que acabou de falar.
Sharon fica mais um pouco depois que as outras garotas vão embora.
— Não ligue para a babaquice dela — fala ela baixinho. — Você devia vir à festa.
— Obrigada, Sharon.
Levanto o espanador para mostrar que preciso voltar ao trabalho. Ela hesita, como se quisesse me contar mais alguma coisa, mas Mindy chama e ela se apressa a sair também.

° ° °

Mais tarde, na biblioteca, não consigo parar de pensar em Sharon, na maneira como ela costumava idolatrar Meg. Por mais que fosse um tanto excêntrica para a cidade, Meg tinha seus admiradores. Tinha aquele algo mais. As pessoas, pelo menos as inteligentes, se sentiam atraídas: gente da escola, músicos que ela conhecia pela internet, All_BS — todos eles chegaram a Meg de uma forma ou de outra.
O que tenho que fazer para atrair All_BS? Não tenho o que Meg costumava ter. As pessoas sempre nos chamavam de Unha e Carne, mas não era bem assim. Havia Meg. E havia eu, que me mantinha atada a ela.
Não posso mais fazer isso. Se quiser encontrar All_BS, preciso ser apenas eu. Respiro fundo. E começo a digitar.

Repete
Repete
Não sou uma dessas pessoas que passa muito tempo pensando na morte ou imaginando como ela seria ou sonhando com ela ou desejando morrer. Pelo menos não achava que fosse. Mas, neste último ano, aconteceram tantas merdas na minha vida que começo a me questionar se eu tenho mesmo uma vida ou se o que eu achava que era minha vida é na verdade uma ilusão, ou talvez um delírio. Porque, para mim, isso não parece vida. Está mais para sobrevivência, como se fosse o máximo a que eu pudesse aspirar. Não sou tão velha assim, mas já me sinto cansada. Até levantar da cama todas as manhãs parece um sacrifício enorme. É como se eu estivesse suportando a vida, em vez de me sentir feliz, realizada com ela. Não vejo o sentido. Se alguém me dissesse que eu poderia voltar atrás e desfazer meu nascimento, eu faria isso. Sinceramente.
Isso é o mesmo que querer morrer? E, se for, o que significa?

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