19

Depois do show, vamos para a casa de alguém. Divido um quarto com uma universitária cheia de piercings chamada Lorraine, que é muito simpática, apesar de não parar de falar sobre os caras da banda. Ben e os outros Scarps deitam no sofá ou em sacos de dormir no porão. Na manhã seguinte, todos comemos bagels catados no lixo e nos arrumamos para sair.
— Prepare-se — diz Ben.
— Para quê?
— Para o fedor. Oito noites de viagem. É capaz de você pegar micose na virilha só de sentar na van.
O restante da banda olha para mim com desconfiança. Será que sabem que eu sou a amiga da garota morta que Ben comeu?
Sento em um banco improvisado com tábuas de madeira empilhadas em cima de dois amplificadores. Ben senta do meu lado. Pegamos a interestadual e os garotos começam a discutir sobre que música ouvir. Ninguém dirige uma palavra a mim. Quando paramos para encher o tanque e os outros saem para comprar o estoque de porcarias para a viagem, pergunto a Ben qual é o problema.
— Estou quebrando o acordo.
— Que acordo?
— Nada de garotas na van.
— Ah.
— Mas você não é uma garota. — Ele parece constrangido. — Não daquele tipo, pelo menos.
— E que tipo de garota eu sou?
Ben balança a cabeça.
— Ainda não sei direito. Uma espécie que ninguém tinha descoberto ainda.
Adormeço perto de Moses Lake e acordo com um sobressalto, apoiada em Ben, meus ouvidos desentupindo enquanto descemos o Snoqualmie Pass.
— Credo, desculpe.
— Tudo bem. — Ele abre um pequeno sorriso.
— Eu babei?
— Nunca vou contar.
Ben continua sorrindo.
— Qual é a graça?
— É só que você quebrou sua promessa, de nunca dormir perto de mim.
Eu me afasto dele bruscamente.
— Quebrei essa promessa ontem à noite, quando dormi debaixo do mesmo teto que você. Ponto para você, Ben. Aproveite, porque é o único que vai ganhar comigo.
Os olhos dele faíscam e, por um instante, o Ben em sua versão babaca volta a aparecer.
Fico até feliz em tê-lo de volta. Mas, então, ele se retrai um pouco, balbuciando alguma coisa.
— O que você disse?
— Não precisa ser grossa.
— Ah, desculpe. Magoei você? — Minha voz é puro sarcasmo e, não sei por quê, de repente fico furiosa.
Ben se afasta mais um pouco e fico surpresa ao perceber que talvez tenha mesmo ferido os sentimentos dele.
— Olha, desculpe... Estou cansada e meio tensa com tudo isso.
— Tudo bem.
— Não quis ser escrota.
Ele torna a sorrir.
— O que foi agora?
— Não costumo ver garotas se chamando de escrotas.
— Posso também me chamar de vaca...
— Pare — diz Ben, me cortando. — Eu odeio essa palavra.
— Sério? Muitos caras parecem achar que é sinônimo de mulher.
— Pois é. Meu pai era um desses. Chamava minha mãe assim. O tempo todo.
— Que merda.
— A merda era ela suportar isso.
Por mais defeitos que Tricia tenha — e são muitos —, ela mantém qualquer drama com seus namorados longe de mim. Os homens nunca passam a noite em casa; ela é que passa a noite na casa deles. Se a agridem verbalmente, pelo menos eu não preciso ouvir.
— Por que ela suportava? Sua mãe? — pergunto.
Ben dá de ombros.
— Ela engravidou do meu irmão aos 17 anos e casou com meu pai. Aos 23, já tinha mais três filhos, então meio que não tinha como fugir. Enquanto isso, ele não parava em casa, sempre na farra. Teve mais dois filhos com uma amante; era um segredo, entre aspas. Todo mundo sabia. Inclusive minha mãe. Mas ela continuava casada com ele. Eles só se divorciaram quando a amante do meu pai ameaçou entrar na justiça para obter uma pensão. Era mais barato e mais fácil largar minha mãe e casar com a amante. Ele sabia que mamãe não era do tipo que entraria na justiça.
— Que horror!
— E ainda piorou. Mamãe finalmente estava livre do desgraçado e estávamos todos mais velhos, um pouco mais independentes. Tudo parecia estar correndo bem. Então, o que ela fez? Engravidou de novo.
— Quantos vocês são?
— Minha mãe teve cinco filhos, quatro com meu pai, um com o babaca atual. E meu pai tem mais dois, que eu saiba, mas tenho certeza que ele teve outros. Para ele, a mulher é que tem a responsabilidade de se prevenir.
— Vocês são tipo A Família Sol-Lá-Si-Dó em versão caipira.
— Eu sei. — Ele dá uma risada. — Só que nunca tivemos uma empregada como a... Como era mesmo o nome dela?
— Alice.
— Alice. — Ele sorri. — A nossa teria que ter um nome de pobre tosco, tipo Tiffani.
— Ou Cody.
Ben fica perplexo. Lembro a ele que faço faxinas para ganhar dinheiro.
Ele chega a ficar vermelho.
— Desculpe, não me lembrava. Não falei por mal.
— Ah, por favor, agora já é tarde — retruco, sorridente; ele também abre um sorriso.
— E então, qual é a sua história? — pergunta Ben.
— Minha história? Você quer dizer da minha família?
Ele ergue as sobrancelhas, como se tivesse colocado tudo para fora e agora fosse a minha vez.
— Não tem muito para contar. É tipo a sua história, só que ao contrário. Somos só eu e minha mãe, Tricia. Sem pai.
— Eles se separaram?
— Nunca estiveram juntos. Ela o chama de doador de esperma, embora não seja o caso, é óbvio, porque isso significaria que Tricia queria engravidar.
Tricia sempre se manteve estranhamente reservada a respeito do meu pai e, ao longo dos anos, passei a suspeitar que ele seja casado. Às vezes o imagino em uma boa casa, com bons filhos e uma boa esposa, e por um lado sinto muita raiva dele por isso, mas por outro até consigo entender. É uma boa vida. Se eu estivesse no lugar dele, também não iria querer que alguém como eu aparecesse para ferrar com tudo isso.
— Tricia acha que me criou sozinha — prossigo —, mas, na verdade, eu fui criada pelos Garcias.
— A família de Meg?
— Isso mesmo. Eles são como uma família de verdade. Mamãe, papai, dois filhos. — Paro de falar para me corrigir, mas então olho para Ben e vejo que não há necessidade. — Jantares em família. Jogar Palavras Cruzadas. Esse tipo de coisa. Às vezes acho que, se não tivesse conhecido Meg, eu nunca saberia como é uma família normal.
Fico calada. Porque me lembrar de todas aquelas vezes na casa dos Garcias, vendo filmes no sofá puído deles, inventando peças de teatro e forçando Scottie a atuar nelas, ficando acordados até tarde diante da fogueira quando saíamos para acampar — tudo isso me enche de ternura. Mas. Sempre há um mas.
Ben está me encarando, como se esperasse que eu continuasse.
— Mas, se é isso que acontece com famílias normais, que esperança pode haver para o resto de nós? — pergunto.
Ele balança a cabeça. Como se também não soubesse a resposta.

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