18

Arranjo outra cliente. A Sra. Driggs. Ela me mostra a casa e nós duas fingimos que eu nunca estive lá antes. É curioso como, quando começa a fingir, você percebe quanto todo mundo está fingindo também.
A casa não é grande — três quartos, estilo casa de fazenda — e já parece bastante limpa, pois ela mora sozinha. O marido dela a abandonou, morreu, divorciou-se dela ou talvez nunca tenha existido. Na última vez em que estive ali, eram apenas ela e o filho, Jeremy, que, como todos na cidade sabem, está cumprindo três anos na penitenciária de Coyote Ridge por posse de drogas. Ele foi preso há um ano, mas a Sra. Driggs me mostra o quarto dele e pede para eu trocar os lençóis da cama uma vez por semana e passar o aspirador no carpete.
O quarto de Jeremy não mudou quase nada desde a última vez que estive ali com Meg: os pôsteres de reggae, as tapeçarias psicodélicas. Meg ouvira falar que Jeremy tinha uma cobra e ficou obcecada pela ideia de vê-la comer. Então, embora ele estivesse no último ano do ensino médio e nós duas, no primeiro, ela o convenceu a nos convidar a ir até lá.
O grande viveiro, com sua floresta tropical exuberante dentro, não está mais lá. Nem a cobra, Hendrix. Que fim terá levado? Será que morreu? Ou a Sr. Driggs se livrou dela depois que Jeremy foi condenado?
Quando a Sra. Driggs me mostra o quarto do filho, sinto um embrulho no estômago, da mesma forma que senti quatro anos atrás, no momento em que Jeremy tirou um rato de um saco e o jogou no viveiro de Hendrix. Eu não esperava que o rato fosse parecer tanto um bichinho de estimação — tão rosado e branco que era quase translúcido. Pela maneira como ele ficou imóvel, exceto por seu focinho trêmulo, dava para perceber que sabia o que o destino lhe reservava. A cobra, enroscada em um canto, também não se movia, sem deixar transparecer que o almoço tinha chegado. Durante um tempo, os dois apenas ficaram assim. Então, Hendrix entrou em ação com um salto e, com um só movimento fluido, estrangulou o rato. Depois de matá-lo, pôs-se a desarticular lentamente as mandíbulas e começou a engoli-lo inteiro. Não consegui continuar assistindo e fui esperar na cozinha. A Sra. Driggs estava ali, vendo as contas. “Terrível, não?”, comentou. Achei que estivesse se referindo às contas a pagar, mas então percebi que estava falando da cobra.
Meg falou que dava para ver o volume do rato no corpo da cobra e que, quando ela voltou no dia seguinte, ainda estava lá, só que menor. Ela ficou fascinada com aquilo tudo e voltou algumas vezes para ver Hendrix comer. Eu, não. Uma vez tinha sido suficiente para mim.
Umas três semanas depois daquele dia que passamos juntos em Seattle, recebo um telefonema de Ben.
— Você não escreve, não telefona — diz ele em tom de brincadeira. — Não se importa com os gatinhos?
— Eles estão bem? — pergunto, com medo de Ben estar me ligando porque eles foram esmagados por um caminhão ou coisa parecida.
— Estão ótimos. O pessoal que mora comigo está cuidando deles.
— E você, não? — Ouço muito barulho ao fundo, pessoas falando, copos retinindo. — Onde você está?
— Missoula. A baixista do Fifteen Seconds of Juliet quebrou o braço, então fomos chamados para ser a banda de abertura do Shug durante a miniturnê deles. E você, o que anda fazendo?
O que eu ando fazendo? Limpando a casa dos outros e apodrecendo na minha enquanto leio e releio os posts entre Meg e All_BS, tentando descobrir para onde ir a partir dali.
Depois daquela última troca de mensagens, a comunicação diminui, deixando bem claro que os dois resolveram continuar a conversa em outro lugar. Mas onde? Não achei nada no computador de Meg. Encontrei o novo endereço de e-mail que All_BS a instruiu a criar no fórum, mas, quando escrevi para ele, a mensagem voltou. Pedi para Harry dar uma olhada. Ele falou que a conta foi ativada e desativada em um espaço de três dias, então Meg provavelmente a criou só para All_BS lhe mostrar como se comunicar diretamente com ele.
“Parece que eles estavam sendo cautelosos”, escreveu Harry. “E você também deveria ser.” Cautelosos. Talvez isso explique todos aqueles e-mails apagados. Meg estava discretamente cobrindo seu rastro.
Também não consigo parar de pensar sobre o tal amigo que lhe disse para tomar medicamentos. Quem era essa pessoa? Algum tipo de confidente? Caso fosse, será que Meg também falou com ele sobre os usuários do Solução Final?
Perguntei para Alice se ela teria sugerido que Meg tomasse medicamentos, mas Alice respondeu que não. Também não tinha visto nenhum indício de que Meg estivesse tomando remédios controlados. Alice perguntou a Richard Locão, que me ligou e disse que não sabia de nada, mas que eu devia tentar falar com alguns dos amigos dela de Seattle. Eu já havia pensado em Ben e, agora, torno a pensar nele como o confidente de Meg. Mas não a ponto de telefonar para ele.
— O mesmo de sempre — respondo.
— O que vai fazer amanhã à noite?
— Nada. Não sei. Por quê?
— Você mora perto de Spokane, não é?
— Perto é relativo por aqui. A uns 160 quilômetros.
— Ah. Achei que fosse mais perto.
— Não. Por quê?
— Vamos tocar em Spokane amanhã à noite. Último show antes de voltarmos para casa. Achei que você fosse querer ir.
Abro a pasta que criei com prints das mensagens de Meg no fórum. Tenho lido e relido essas postagens sem parar e não estou nem um pouco mais perto de descobrir quem é esse tal All_BS. Suspeito que seja um cara mais velho. Mas é apenas um palpite. Talvez Ben possa ser minha conexão com esse amigo misterioso. Talvez ele seja o amigo misterioso.
Não quero ver Ben. Ou talvez não queira querer ver Ben. Mas preciso vê-lo, então aceito o convite.

° ° °

A viagem para Spokane é cara e um porre, porque o último ônibus de volta é muito cedo e não quero passar a noite por lá. Pergunto a Tricia se posso usar o carro.
— Não. Vou ganhar uma grana preta hoje. — Ela imita um caça-níqueis, com direito ao som das moedas caindo. — Quer vir?
Tricia adora jogar, talvez porque seja a única área na sua vida em que ela tem alguma sorte. Quando eu era mais nova, fui arrastada algumas vezes para o cassino de Wenatchee com ela.
— Não, obrigada.
Pego o ônibus para Spokane, pensando em falar com Ben e ir embora antes do show se conseguir uma carona de volta para esta noite. Durante a viagem de ida, fico o tempo todo ou nervosa, ou enjoada, mas esse é o meu estado normal nos últimos dias. Passar tanto tempo tentando encontrar Meg e All_BS me deixou numa ansiedade constante. Não tenho comido nem dormido direito e perdi tanto peso que Tricia diz que pareço uma supermodelo.
É uma curta caminhada da rodoviária no centro da cidade até o restaurante de tacos onde Ben marcou comigo. O clima está quente, seco e poeirento; este ano o inverno pulou direto para o verão sem passar pela primavera, o que me parece adequado. De extremo a extremo, sem tempo para transições suaves.
Ben já está no restaurante quase vazio, em uma cabine reservada nos fundos. Ele se levanta com um salto quando eu entro, parecendo ao mesmo tempo cansado, provavelmente por estar na estrada, e feliz, talvez pelo mesmo motivo.
Ficamos os dois parados por alguns instantes, sem saber o que fazer. Depois dessa breve pausa constrangedora, eu digo:
— Vamos sentar?
— Sim, claro.
Tem uma embalagem de seis cervejas em cima da mesa.
— O esquema aqui é trazer sua própria bebida — explica Ben. — Quer uma?
Pego uma cerveja. A garçonete traz um cesto de batatas fritas e um pouco de molho. Apanho algumas e descubro que consigo comê-las. Ben e eu bebemos nossas cervejas e conversamos um pouco sobre nada em especial. Ele me conta sobre a turnê, sobre as vezes em que dormiu no chão, sobre como teve que dividir uma escova de dentes com o baterista porque perdeu a sua própria. Eu digo a ele que isso é nojento. Você pode comprar escovas de dentes em qualquer loja de conveniência. Mas ele responde que não renderia uma história tão interessante e eu lembro que, com Ben McCallister, é tudo encenação.
Falamos sobre os gatos e ele me mostra as fotos que tem deles no telefone, uma quantidade mais ou menos ridícula de fotos de gatinhos para um homem. Nossa comida chega e conversamos sobre mais trivialidades, até que, depois de um tempo, começa a ficar claro que estou evitando o assunto sobre o qual deveria estar falando. O motivo que me trouxe até aqui.
Respiro fundo.
— Então, encontrei algumas coisas.
Ben me encara. Aqueles olhos outra vez. Preciso desviar o olhar.
— Que coisas?
— No computador de Meg. E não só lá.
Começo falando sobre os arquivos que Harry conseguiu resgatar. Eu trouxe as mensagens que Meg escreveu para All_BS e pretendia mostrá-las para Ben, mas não tenho a chance, pois ele parte para a ofensiva:
— Achei que você tinha dito que iria me contar se encontrasse alguma coisa.
— Estou contando agora.
— É, mas só porque eu telefonei para você. E se eu não tivesse telefonado?
— Desculpe. Achei que não fazia muito sentido.
Não quero dizer nada em especial com isso, mas ele se recosta no banco e vejo que ficou puto da vida.
— A Vaqueira Cody cavalga sozinha, ahn? — diz ele, com aquele grunhido.
— Não costumava ser assim — retruco, afastando o prato, sem apetite outra vez. — Essa é a razão de eu estar fazendo tudo isto.
Ele fica calado por alguns instantes.
— Desculpe. Eu sei.
Pressiono os dedos contra os olhos até tudo ficar preto.
— Olha, é o seguinte: Meg falou sobre ter conversado com alguém que lhe disse para ir ao centro de saúde do campus arranjar antidepressivos. Achei que ela pudesse estar se referindo a você.
Ele bufa.
— Tá, sei.
— Como assim “tá, sei”? Ela mandou todos aqueles e-mails para você.
— Não tinha nada sobre antidepressivos neles. — Ele abre outra lata de cerveja. — Você leu as mensagens. São como um fluxo de consciência. Ela não estava escrevendo exatamente para mim; apenas queria colocar aquilo tudo para fora.
— É, imagino que sim...
— E eu falei para ela me deixar em paz, Cody. Esqueceu? — Ele brinca com o maço de cigarros. — Não foi comigo. Deve ter sido com um dos colegas de república dela.
— Não foi com Alice nem com Richard e, segundo eles, com ninguém de Cascades. Embora possa ter sido, não sei quem ela conhecia por lá. Mas Richard acha mais provável que tenha sido com algum dos amigos dela de Seattle.
Ben dá de ombros.
— Pode ser. Mas não comigo. Aliás, por que isso é tão importante agora?
Porque, se ela se abriu com alguém sobre os medicamentos, pode ter falado também sobre All_BS e o fórum. Mas não conto a Ben sobre o Solução Final. Tenho medo de ele ficar irritado outra vez, embora não tenha o menor direito.
— Preciso de respostas — falo, sem entrar em detalhes.
— Não pode simplesmente perguntar no centro de saúde?
— Não. Tem a questão da confidencialidade médico-paciente.
— É, mas a paciente está morta. — Ben fica quieto, como se isso fosse novidade para mim.
— Mesmo assim, eles não querem falar. Já tentei.
— Talvez os pais dela possam tentar.
Balanço a cabeça.
— Por que não?
— Porque eles não sabem.
— Você não contou a eles?
Não. Não contei a eles sobre nada disso. O segredo parece maior do que nunca, quase como um tumor. Não há a menor hipótese de eu contar aos Garcias agora. Seria devastador.
Mas penso que, se eu descobrir mais sobre esse All_BS, o suficiente para fazer algo que possa realmente ajudar, então poderei contar. E poderei olhá-los nos olhos. Já faz algumas semanas que não vou à casa deles. Sue já me deixou várias mensagens de voz me convidando para jantar, mas a simples ideia de estar no mesmo ambiente que eles...
— Não posso — digo, pousando a cabeça na mesa.
Ben estende a mão para tocar a minha, um gesto ao mesmo tempo inesperado e supreendentemente reconfortante.
— Tudo bem. Nós podemos ir às boates de Seattle. Descobrir se ela falou com alguém.
— Nós? — A palavra é um alívio.
Ben assente.
— Vamos voltar amanhã de manhã. Você pode aproveitar a carona. Aí damos uma volta pelas boates. Vai ser sábado à noite, todo mundo vai estar na rua. Podemos fazer perguntas. Dar outra olhada nos e-mails dela. Encontrar algumas respostas.

° ° °

Durante o show daquela noite, observo Ben com atenção. A banda é boa — não excelente, mas boa. Ben faz o seu truque, com aqueles vocais grunhidos, guturais, safados, e vejo como ele é carismático. Vejo as garotas na plateia entrando na onda dele, e perdoo um pouco Meg por isso. Seria mesmo difícil de resistir.
Em um determinado momento, Ben protege os olhos e olha para além das luzes do palco, como fez da primeira vez que o vi tocar. Mas, desta vez, tenho a nítida impressão de que está realmente procurando por mim.

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